

A visita do beija-flor
* Por Harry Wiese
Às vezes, as visitas que recebemos são inesperadas e surpreendentes. Eu estava na minha biblioteca, concentrado na leitura de um livro, quando ouvi atrás de mim um barulho contínuo, ora mais perto, ora mais longe, como se fosse um ventilador. Não dei importância porque um barulhinho aqui e ali sempre existe. Como aqueles ruídos não desapareceram fui averiguar: um beija-flor verde com alguns tons em azul e preto subia e descia rente à parede como um pequeno helicóptero.
Deixei-o ali com suas manias de subir, descer e ficar inerte no ar, fazendo parceria com helicópteros e com o Dadá Maravilha, único jogador de futebol, como ele mesmo diz, que consegue ficar parado no ar. Como o passarinho não cessava no seu exercício de voar, fiquei preocupado, pensando que pudesse morrer de fome e de superesforço, pois ali não havia comida e nem lugar para descansar. Beija-flores não conseguem viver muito tempo sem se alimentarem. Tentei pegá-lo, mas tive medo de machucá-lo. As asas fininhas, batendo milhares de vezes tão ligeiras, não resistiriam ao ato de aprisionamento. Em seguida, ele foi à direção da janela, encostou o bico no vidro e lentamente foi caindo com as últimas forças de seu pequeno corpo frágil.
Peguei-o e segurei-o com a mão direita. Foi possível sentir as suas batidas cardíacas. Eram tão rápidas como suas asas em movimento alguns momentos antes. Abri a porta com a intenção de ir ao jardim e soltá-lo. Ali, lentamente abri minha mão e o beija-flor nem se mexeu. Estava deitado de costas, parecia morto. Foi naquele momento que senti o remorso mais antigo e mais forte de minha vida, um remorso de cinquenta anos. Vou contar a história.
Quando eu era criança, os meninos tinham estilingues com os quais matavam passarinhos. A liderança do nosso grupo era estabelecida pelo sucesso das caçadas. Quem matasse mais e quem matasse pássaro grande era o líder e gozava as delícias do poder. Os outros como eu, que acertavam pouco ou nada, ficavam na saudade.
Certo dia, um beija-flor igual ao da minha mão, sentou-se num galho de árvore frágil e seco bem na minha frente. Peguei o estilingue e mirei no galho para que ele quebrasse e assustasse o bichinho, e eu que nunca acertei nada, abati aquele anjo de passarinho sem querer. Tentei reanimá-lo, tentei de tudo e nada. Estava morto. Então me senti o maior criminoso do mundo.
Antes que pudesse desfazer-me do corpo, meu irmão me viu e a condenação foi imediata e categórica:
- Vou contar pra ele!
Papai tolerava a matança de passarinhos desde que não fossem pequenos e valesse a pena assá-los e comê-los. Fora disso, o castigo era iminente. Feitas as negociações e os trambiques, tirar leite das vacas de manhã cedo antes de ir à escola, secar a louça do almoço e fechar o galinheiro à noite, durante uma semana, eu estava em relativa paz comigo. Eu deveria pagar pelo crime cometido. Depois desse acidente, nunca mais matei passarinho algum.
Agora, outro beija-flor estava em minha mão, igualzinho àquele; não se mexia, não dava sinal de vida. Mas de repente, o bichinho percebeu que não havia mais impedimento à liberdade. Abriu os olhos, levantou a cabeça, acionou as asinhas e foi embora para um matinho perto do Rio Sellin que corre logo atrás de minha casa. Voltei à leitura e dei o episódio por encerrado, mas não consegui me concentrar direito, porque o maldito remorso por ter matado aquele beija-flor há cinquenta anos voltou a me incomodar.
No dia seguinte, no mesmo horário, ouvi novamente aquele barulho de ventilador ligado. O meu beija-flor havia voltado. Incrível. Não foi preciso fazer toda a operação de resgate novamente. Depois de dar voltas pela casa e um rasante em mim saiu por onde entrou. Ele veio me saudar. Alguns dias depois ainda o vi voando no meu jardim. Não entrou na casa porque as portas estavam fechadas e eu estava ali acenando para ele. Agora já faz tempo que não mais o vejo. Talvez tenha ido voar em outros lugares ou foi morar no céu dos passarinhos.
E eu, depois daquele episódio, vivo até mais tranquilo. Mesmo com o remorso de tantos anos reacendido, tenho certeza que eles me perdoaram porque aquele beija-flor gostava de mim e deu prova disso. Como recompensa, agora na primavera, vou instalar um bebedouro com néctar e flores. Se eles toparem, na minha biblioteca.
• Escritor e professor, autor dos livros “A sétima caverna”, “Terra da fartura”, “A inserção da língua portuguesa na colônia Hammonia” e “Girafa de espantos”, entre outros.
* Por Harry Wiese
Às vezes, as visitas que recebemos são inesperadas e surpreendentes. Eu estava na minha biblioteca, concentrado na leitura de um livro, quando ouvi atrás de mim um barulho contínuo, ora mais perto, ora mais longe, como se fosse um ventilador. Não dei importância porque um barulhinho aqui e ali sempre existe. Como aqueles ruídos não desapareceram fui averiguar: um beija-flor verde com alguns tons em azul e preto subia e descia rente à parede como um pequeno helicóptero.
Deixei-o ali com suas manias de subir, descer e ficar inerte no ar, fazendo parceria com helicópteros e com o Dadá Maravilha, único jogador de futebol, como ele mesmo diz, que consegue ficar parado no ar. Como o passarinho não cessava no seu exercício de voar, fiquei preocupado, pensando que pudesse morrer de fome e de superesforço, pois ali não havia comida e nem lugar para descansar. Beija-flores não conseguem viver muito tempo sem se alimentarem. Tentei pegá-lo, mas tive medo de machucá-lo. As asas fininhas, batendo milhares de vezes tão ligeiras, não resistiriam ao ato de aprisionamento. Em seguida, ele foi à direção da janela, encostou o bico no vidro e lentamente foi caindo com as últimas forças de seu pequeno corpo frágil.
Peguei-o e segurei-o com a mão direita. Foi possível sentir as suas batidas cardíacas. Eram tão rápidas como suas asas em movimento alguns momentos antes. Abri a porta com a intenção de ir ao jardim e soltá-lo. Ali, lentamente abri minha mão e o beija-flor nem se mexeu. Estava deitado de costas, parecia morto. Foi naquele momento que senti o remorso mais antigo e mais forte de minha vida, um remorso de cinquenta anos. Vou contar a história.
Quando eu era criança, os meninos tinham estilingues com os quais matavam passarinhos. A liderança do nosso grupo era estabelecida pelo sucesso das caçadas. Quem matasse mais e quem matasse pássaro grande era o líder e gozava as delícias do poder. Os outros como eu, que acertavam pouco ou nada, ficavam na saudade.
Certo dia, um beija-flor igual ao da minha mão, sentou-se num galho de árvore frágil e seco bem na minha frente. Peguei o estilingue e mirei no galho para que ele quebrasse e assustasse o bichinho, e eu que nunca acertei nada, abati aquele anjo de passarinho sem querer. Tentei reanimá-lo, tentei de tudo e nada. Estava morto. Então me senti o maior criminoso do mundo.
Antes que pudesse desfazer-me do corpo, meu irmão me viu e a condenação foi imediata e categórica:
- Vou contar pra ele!
Papai tolerava a matança de passarinhos desde que não fossem pequenos e valesse a pena assá-los e comê-los. Fora disso, o castigo era iminente. Feitas as negociações e os trambiques, tirar leite das vacas de manhã cedo antes de ir à escola, secar a louça do almoço e fechar o galinheiro à noite, durante uma semana, eu estava em relativa paz comigo. Eu deveria pagar pelo crime cometido. Depois desse acidente, nunca mais matei passarinho algum.
Agora, outro beija-flor estava em minha mão, igualzinho àquele; não se mexia, não dava sinal de vida. Mas de repente, o bichinho percebeu que não havia mais impedimento à liberdade. Abriu os olhos, levantou a cabeça, acionou as asinhas e foi embora para um matinho perto do Rio Sellin que corre logo atrás de minha casa. Voltei à leitura e dei o episódio por encerrado, mas não consegui me concentrar direito, porque o maldito remorso por ter matado aquele beija-flor há cinquenta anos voltou a me incomodar.
No dia seguinte, no mesmo horário, ouvi novamente aquele barulho de ventilador ligado. O meu beija-flor havia voltado. Incrível. Não foi preciso fazer toda a operação de resgate novamente. Depois de dar voltas pela casa e um rasante em mim saiu por onde entrou. Ele veio me saudar. Alguns dias depois ainda o vi voando no meu jardim. Não entrou na casa porque as portas estavam fechadas e eu estava ali acenando para ele. Agora já faz tempo que não mais o vejo. Talvez tenha ido voar em outros lugares ou foi morar no céu dos passarinhos.
E eu, depois daquele episódio, vivo até mais tranquilo. Mesmo com o remorso de tantos anos reacendido, tenho certeza que eles me perdoaram porque aquele beija-flor gostava de mim e deu prova disso. Como recompensa, agora na primavera, vou instalar um bebedouro com néctar e flores. Se eles toparem, na minha biblioteca.
• Escritor e professor, autor dos livros “A sétima caverna”, “Terra da fartura”, “A inserção da língua portuguesa na colônia Hammonia” e “Girafa de espantos”, entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário