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Minha casa sou eu
* Por Isabel Vieira
Conheci um homem que não se sentia em casa na casa em que vivia. Não que houvesse algo de errado com ela, ao contrário. Os que a freqüentavam não entendiam. Como alguém podia sentir-se mal numa casa bonita, aconchegante e bem equipada, onde nunca faltaram roupas limpas nas gavetas e deliciosos aromas saindo da cozinha?
Mas ele não gostava de voltar à casa depois de um dia de trabalho, ou de usufruir dela nos fins de semana, justificando-se com variados motivos. Tinha a sensação de a casa pertencer à mulher, não ao casal, dizia; ela a administrava levando em conta somente seus hábitos e os dos filhos; ele não passava de um hóspede ali.
Como a alma feminina carrega o vício de sentir-se responsável por tudo o que ocorre em seu ninho, a acusada apegava-se aos raros fiapos de objetividade que ele lhe fornecia para tentar remediar a situação. O jantar era conturbado pela desordem das crianças, que assistiam à televisão enquanto comiam? Fácil, era só estabelecer horários diferentes para os programas e as refeições. Havia poucas festas para os amigos? Ela esperava vê-lo envolver-se ao menos com os drinques, nessas ocasiões – mas, como se um fio invisível o prendesse à rua, ele tinha problemas no escritório e se atrasava, encarando as visitas como uma tediosa obrigação.
Depois que se separaram, ele lhe confessou. Surpreso, descobrira que tampouco gostava do novo apartamento, escolhido e gerenciado a seu modo. O buraco era mais fundo, reconheceu. Não se sentia bem em nenhuma casa porque não se sentia confortável consigo mesmo, com seu interior.
A analogia é tão clara quanto verdadeira: sentir-se em casa é encarar nossa própria alma, nossos sonhos, nossos fracassos, nossos fantasmas, dar um mergulho no mais fundo de nós. Não há nada mais íntimo que uma casa. Minha casa, em última instância, sou eu.
Não estou me referindo àquilo que em inglês se diz house, mas home; a que os franceses chamam maison, e sim chez moi. Em português a palavra talvez fosse lar, que soa meio piegas – mas nomeá-la não importa, você conhece bem seu sentido. E sabe que não faz diferença se ele for grande ou pequeno, simples ou luxuoso, rodeado por jardins ou pendurado no alto de um prédio. Minha casa – isso é o que a torna única – é aquele lugar onde posso ser eu, sem disfarces, e só me mostrar às pessoas queridas; é onde me refugio quando o mundo parece ameaçador, ou se me sinto triste; é o ninho que me acolhe e para o qual sei que poderei sempre voltar, não importa o quanto esteja longe, do outro lado do mundo.
Eu suspeitava dessa relação há tempos, pois sempre sonhei com casas em contextos que não deixavam margem a dúvidas. Todas as vezes que me sinto desorganizada, precisando dar novos rumos à vida, sonho que estou arrumando a casa, mudando os móveis de lugar ou buscando novos usos para cômodos antigos. Numa época em que não me julgava capaz de sair de uma situação difícil, sonhei que uma menina pequena, quase um bebê, vivia sozinha em uma casa pré-fabricada, construída sobre estacas. No sonho, me espantava ver como, apesar do desamparo, ela se saía bem: não caía, preparava a própria comida e parecia feliz – o sonho me dizia que eu não estava tão frágil assim. Em outra fase, essa de expansão, um sonho me mostrou uma porta que levava a um cômodo novo dentro de minha própria casa. E numa época de mudanças drásticas na vida afetiva, que aconteceram à minha revelia, sonhei que não era capaz de explicar a ninguém porque estava mudando de casa, já que gostava tanto da antiga.
Só bem mais tarde fui saber que Jung desenvolveu suas teorias a partir de um sonho recorrente com casa, que lhe deu pistas importantes sobre o funcionamento da psique. Nesse sonho, Jung via-se entrando numa casa de vários andares; à medida que descia as escadas, notava que cada um representava uma época diferente: quanto mais inferiores, mais antigas. Uma argola numa laje do térreo levava ao porão. Ali, uma poeira grossa cobria cacos de cerâmica e vestígios de povos primitivos.
Na visão de Jung, os pavimentos representam os diferentes níveis da mente. No andar superior está a percepção consciente. Conforme descemos, encontramos depósitos de vivências pessoais arquivadas, que podem ser restauradas ou esquecidas. E no porão ou caverna, o nível mais profundo da psique, é onde fica o inconsciente coletivo, conjunto de todas as memórias (imagens, símbolos, fantasias universais) de nossa evolução como espécie, repetidas na mente de cada indivíduo em cada geração.
Sem esquecer a relação com o feminino que outrora se deu à casa (no sentido de refúgio, mãe, proteção), há hoje um relativo consenso, entre diferentes leituras simbólicas do espaço, de que ela representa muito do nosso mundo interior. A fachada estaria relacionada à aparência ou máscara; o telhado e o andar superior, ao pensamento e ao espírito; os andares inferiores, ao inconsciente e aos instintos; e a cozinha, local onde se transformam os alimentos, seria o lugar onde se processam nossas mudanças psíquicas, as transformações alquímicas da nossa evolução.
Não é à toa, portanto, que as casas se parecem tanto com seus donos – você já reparou? Há casas que nos passam a sensação de calor ou de frieza, de horizontes largos ou de confinamento, de aconchego ou de rejeição. Em geral, quem mora ali é assim também. Há algumas que, no mercado, têm cotação baixa – o mercado não conhece o que realmente tem valor –, mas que se assemelham a um útero, tamanho seu poder de sedução.
Conheci uma casa assim, de um casal e suas duas filhas, que viviam numa ilha no litoral de São Paulo. Não tinha mais que 100 metros quadrados e era desprovida da maioria dos luxos da nossa civilização. Mas o calor que se desprendia de suas paredes, misturado ao aroma do pão caseiro que minha amiga assava na cozinha, integrada à sala por um balcão, atraía as pessoas mais incríveis para dentro dela – até algumas que viviam em mansões.
Tempos depois eles se mudaram, a casa foi vendida por uns poucos trocados, mas sua capacidade de aglutinar pessoas não se esgotou. Fui visitá-los em outra ilha, no Sul distante, e estava curiosa para conhecer a nova casa, que eu sabia ser bem diferente da primeira, tanto no projeto como na topografia do terreno. Não fiquei surpresa ao constatar o óbvio: era igualzinha. Pois seu interior – o de seus donos – não havia mudado. Ao contrário, depurara com os anos, tornando-os proprietários de uma felicidade ainda mais sólida, mais calorosa, mais verdadeira.
*A paulista Isabel Vieira foi editora das revistas Capricho e Claudia. É autora de 20 romances juvenis, entre eles Em busca de Mim (FTD, Prêmio Orígenes Lessa - FNLIJ), E agora, mãe?(Moderna), O verão tem gosto de sal (Moderna) e O ano em que fizemos greve de amor (FTD, Prêmio Adolfo Aizen - UBE).
* Por Isabel Vieira
Conheci um homem que não se sentia em casa na casa em que vivia. Não que houvesse algo de errado com ela, ao contrário. Os que a freqüentavam não entendiam. Como alguém podia sentir-se mal numa casa bonita, aconchegante e bem equipada, onde nunca faltaram roupas limpas nas gavetas e deliciosos aromas saindo da cozinha?
Mas ele não gostava de voltar à casa depois de um dia de trabalho, ou de usufruir dela nos fins de semana, justificando-se com variados motivos. Tinha a sensação de a casa pertencer à mulher, não ao casal, dizia; ela a administrava levando em conta somente seus hábitos e os dos filhos; ele não passava de um hóspede ali.
Como a alma feminina carrega o vício de sentir-se responsável por tudo o que ocorre em seu ninho, a acusada apegava-se aos raros fiapos de objetividade que ele lhe fornecia para tentar remediar a situação. O jantar era conturbado pela desordem das crianças, que assistiam à televisão enquanto comiam? Fácil, era só estabelecer horários diferentes para os programas e as refeições. Havia poucas festas para os amigos? Ela esperava vê-lo envolver-se ao menos com os drinques, nessas ocasiões – mas, como se um fio invisível o prendesse à rua, ele tinha problemas no escritório e se atrasava, encarando as visitas como uma tediosa obrigação.
Depois que se separaram, ele lhe confessou. Surpreso, descobrira que tampouco gostava do novo apartamento, escolhido e gerenciado a seu modo. O buraco era mais fundo, reconheceu. Não se sentia bem em nenhuma casa porque não se sentia confortável consigo mesmo, com seu interior.
A analogia é tão clara quanto verdadeira: sentir-se em casa é encarar nossa própria alma, nossos sonhos, nossos fracassos, nossos fantasmas, dar um mergulho no mais fundo de nós. Não há nada mais íntimo que uma casa. Minha casa, em última instância, sou eu.
Não estou me referindo àquilo que em inglês se diz house, mas home; a que os franceses chamam maison, e sim chez moi. Em português a palavra talvez fosse lar, que soa meio piegas – mas nomeá-la não importa, você conhece bem seu sentido. E sabe que não faz diferença se ele for grande ou pequeno, simples ou luxuoso, rodeado por jardins ou pendurado no alto de um prédio. Minha casa – isso é o que a torna única – é aquele lugar onde posso ser eu, sem disfarces, e só me mostrar às pessoas queridas; é onde me refugio quando o mundo parece ameaçador, ou se me sinto triste; é o ninho que me acolhe e para o qual sei que poderei sempre voltar, não importa o quanto esteja longe, do outro lado do mundo.
Eu suspeitava dessa relação há tempos, pois sempre sonhei com casas em contextos que não deixavam margem a dúvidas. Todas as vezes que me sinto desorganizada, precisando dar novos rumos à vida, sonho que estou arrumando a casa, mudando os móveis de lugar ou buscando novos usos para cômodos antigos. Numa época em que não me julgava capaz de sair de uma situação difícil, sonhei que uma menina pequena, quase um bebê, vivia sozinha em uma casa pré-fabricada, construída sobre estacas. No sonho, me espantava ver como, apesar do desamparo, ela se saía bem: não caía, preparava a própria comida e parecia feliz – o sonho me dizia que eu não estava tão frágil assim. Em outra fase, essa de expansão, um sonho me mostrou uma porta que levava a um cômodo novo dentro de minha própria casa. E numa época de mudanças drásticas na vida afetiva, que aconteceram à minha revelia, sonhei que não era capaz de explicar a ninguém porque estava mudando de casa, já que gostava tanto da antiga.
Só bem mais tarde fui saber que Jung desenvolveu suas teorias a partir de um sonho recorrente com casa, que lhe deu pistas importantes sobre o funcionamento da psique. Nesse sonho, Jung via-se entrando numa casa de vários andares; à medida que descia as escadas, notava que cada um representava uma época diferente: quanto mais inferiores, mais antigas. Uma argola numa laje do térreo levava ao porão. Ali, uma poeira grossa cobria cacos de cerâmica e vestígios de povos primitivos.
Na visão de Jung, os pavimentos representam os diferentes níveis da mente. No andar superior está a percepção consciente. Conforme descemos, encontramos depósitos de vivências pessoais arquivadas, que podem ser restauradas ou esquecidas. E no porão ou caverna, o nível mais profundo da psique, é onde fica o inconsciente coletivo, conjunto de todas as memórias (imagens, símbolos, fantasias universais) de nossa evolução como espécie, repetidas na mente de cada indivíduo em cada geração.
Sem esquecer a relação com o feminino que outrora se deu à casa (no sentido de refúgio, mãe, proteção), há hoje um relativo consenso, entre diferentes leituras simbólicas do espaço, de que ela representa muito do nosso mundo interior. A fachada estaria relacionada à aparência ou máscara; o telhado e o andar superior, ao pensamento e ao espírito; os andares inferiores, ao inconsciente e aos instintos; e a cozinha, local onde se transformam os alimentos, seria o lugar onde se processam nossas mudanças psíquicas, as transformações alquímicas da nossa evolução.
Não é à toa, portanto, que as casas se parecem tanto com seus donos – você já reparou? Há casas que nos passam a sensação de calor ou de frieza, de horizontes largos ou de confinamento, de aconchego ou de rejeição. Em geral, quem mora ali é assim também. Há algumas que, no mercado, têm cotação baixa – o mercado não conhece o que realmente tem valor –, mas que se assemelham a um útero, tamanho seu poder de sedução.
Conheci uma casa assim, de um casal e suas duas filhas, que viviam numa ilha no litoral de São Paulo. Não tinha mais que 100 metros quadrados e era desprovida da maioria dos luxos da nossa civilização. Mas o calor que se desprendia de suas paredes, misturado ao aroma do pão caseiro que minha amiga assava na cozinha, integrada à sala por um balcão, atraía as pessoas mais incríveis para dentro dela – até algumas que viviam em mansões.
Tempos depois eles se mudaram, a casa foi vendida por uns poucos trocados, mas sua capacidade de aglutinar pessoas não se esgotou. Fui visitá-los em outra ilha, no Sul distante, e estava curiosa para conhecer a nova casa, que eu sabia ser bem diferente da primeira, tanto no projeto como na topografia do terreno. Não fiquei surpresa ao constatar o óbvio: era igualzinha. Pois seu interior – o de seus donos – não havia mudado. Ao contrário, depurara com os anos, tornando-os proprietários de uma felicidade ainda mais sólida, mais calorosa, mais verdadeira.
*A paulista Isabel Vieira foi editora das revistas Capricho e Claudia. É autora de 20 romances juvenis, entre eles Em busca de Mim (FTD, Prêmio Orígenes Lessa - FNLIJ), E agora, mãe?(Moderna), O verão tem gosto de sal (Moderna) e O ano em que fizemos greve de amor (FTD, Prêmio Adolfo Aizen - UBE).
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