sexta-feira, 1 de outubro de 2010




Manos *


** Por Urariano Mota

Quando Carlos deixou sua casa, assim como João, ele virou as costas para o aglomerado de indivíduos sob um teto a que chamava de família. Ele, assim como João, queria salvar-se do pântano. A ordem era, sem titubear, cair fora ou descer na lama. Enquanto João saiu de casa quase como quem se vai expulso, por não encontrar entre os seus algo parecido com fraternidade, Carlos partiu para o seu exílio deixando, e isso quer dizer, ele se liberou de amarras que, embora em seu prejuízo, o queriam. A diferença é de acento, frágil, mas é das pequeninas diferenças que são gênese, gotas de pus na corrente sanguínea, que em seu nascedouro são nada, até que cresçam e envenenem. Da fraternidade verdadeira que não havia entre os seus prendia Carlos um arremedo, representado no afeto de simplório que lhe dava o pai. A isso ele também deu as costas, forçado. Era deixar ou cair junto, a princípio.

Desceu de um táxi na Manoel Borba, olhou no térreo as 4 paredes de tabique e suspirou: “era preciso”. Foi como se tivesse feito uma longa viagem para outra cidade, com a vantagem de ter a paisagem recifense ao sair na calçada. Uma outra cidade com o sotaque do Recife, com os subúrbios do Recife, o Capibaribe e o mar de Boa Viagem. Podia sair para onde quisesse, voltar à hora de sua vontade, ouvir os discos que seus ouvidos desejassem. Sem vozes dissonantes. Se não era bem um homem livre, era pelo menos um presidiário em férias. Um interregno ele havia alcançado.

Ora, encaremos mais de perto essa alegria que era um alívio. Carlos havia, pensava, enterrado os seus mortos - passo necessário para esquecê-los. O problema é que vez por outra as almas dos seus defuntos voltavam. Batendo à porta, ou esperando-o à frente da pensão. O endereço haviam conseguido pela voz do próprio Carlos, que por excesso de sinceridade fora imprudente. Apareciam, voltavam. Na pessoa do irmão, com os cabelos revoltos, e face de adolescente que descera aos infernos. Acompanhado, era fatal, das notícias de um mundo que deveria estar soterrado. Carlos nem precisava ouvi-lo. De olhos fechados, em penitência, calava, que o tema, introdução e desenvolvimento já eram conhecidos. Uma voz, num fluxo de mágoa, descia:

- Carlinhos - dizia-lhe o irmão, coçando-se sucessivas vezes no peito. - Carlinhos, a situação lá em casa tá preta.

E Carlos pontuava, ao ouvir um silêncio de pausa que era mais que um regatinho choroso:

- Sei.

- Eu tenho feito tudo para arranjar um emprego - continuava o irmão, e, de olhos fechados, sentado em seu leito, Carlos sabia que esse “tudo” resumia-se à declaração da impossibilidade de conseguir um emprego. - Mas eu tô sem roupa, um emprego bom fica difícil. Os meninos não me emprestam mais as roupas deles, eles pensam que eu tenho sarna.... Carlinhos? ...

- Sei.

- Eu deixei de beber ... assim, eu tô bebendo muito pouco, quase não bebo. Eu só leio Dostoievski.

- Sei.

- Papai já nem reclama. Ele passa o dia todo calado. Olha, tem dia que eu almoço na casa de Jorge, outro dia eu vou à casa de Bete, pra almoçar eu me viro. Ando a pé, não tenho nem a passagem do ônibus .... Carlinhos? Esse disco de Sidney Miller tá bom? Se eu tivesse um passa-discos...Carlinhos? ...- E agora vinha o desfecho, inevitável: - Você me arruma algum dinheiro?

Atingido esse fim, Carlos também possuía um desfecho, inevitável:

- Eu posso te arrumar a passagem. A pensão me leva tudo - dizia, sem fitar a face pálida do irmão.

Era-lhe doloroso fitar o irmão. Sabia-o perdido, “irremediavelmente perdido”. Via-o pelas costas, saindo cabisbaixo, encostando cuidadoso a porta. Deitava-se, e pesquisava as telhas e caibros estendidos sobre o quarto. O que lhe doía no rosto do irmão não era o reflexo do próprio rosto. Não era nem um princípio de inteligência, de sensibilidade, que percebia balbuciar por entre o escuro da lama. O que o magoava era a lembrança de uma história comum que voltava. Era como se ele, Carlos, procurasse Carlos anos depois, dizendo-lhe, “você que está em mais conforto ajude o Carlos que você um dia foi. Você sabe o que eu estou sentindo. Ajude-me”. Magoava-o, magoava-se: “terei perdão em lhe negar ajuda?” E num processo compreensível de defesa a sua mágoa crescia para a irritação, pois que era necessário justificar-se aos próprios olhos. “Mas se ele não reage? De que é que serve ajudá-lo? É só queixume, lamúria, desculpa, desculpa ... é um farsante! É preciso que se diga: é um farsante. É um pobre farsante, certo, mas é: eu tenho que ser justo”. E esta palavra, “justo”, era a pinça que o suspendia do desconforto. Porque as palavras, para os intelectuais, têm isto: quando enunciadas, dão-lhes a ilusão moral do seu significado. Dizendo-se, “eu tenho que ser justo”, Carlos se entregava à passagem do “estou sendo justo”, associado, é claro, a razões de decência que lhe caíam por acréscimo. “Magoa-me”, dizia-se, e até mesmo o enunciado da mágoa era um achado feliz, porque era pela mágoa que realizava uma ética necessária. Estóico, sentia-se. “Só deve ser ajudado quem se ajuda. Ele tem que se levantar com as próprias pernas”. Por via das dúvidas, no entanto, extirpava do seu pensamento a imagem das costas do irmão curvado. “Talvez esteja perdido”, levantava-se, procurando um disco. “Que é que eu vou fazer? Eu não vou morrer por ele. A morte só pode ser vivida pelo indivíduo. Se ele assim quer ...”, e achando o disco que desejava, assentando-o no prato, com mãos precisas: “exijo dele o que exijo de mim. Diabo de sentimento burguês de piedade! “. O adjetivo burguês também lhe servia. Numa tradução particular, “burguês” era mais uma pinça que do desconforto o levantava. Deitava-se e ouvia. Baden e Vinícius vinham afinal sobre o peito calcinado descer como um bálsamo:

“Quando eu me pergunto se você existe mesmo, amor, entro logo em órbita do espaço de mim mesmo, amor. Será que por acaso a flor sabe que é flor, e a estrela Vênus sabe ao menos por que brilha mais bonita, amor? O astronauta ao menos viu que a terra é toda azul, amor. Isso é bom saber porque é bom morar no azul, amor...”.


* Do romance Os Corações Futuristas


** Escritor e jornalista

Um comentário:

  1. Pouco importa se gosto ou não dos seus escritos Urariano. Isso não muda a história( sua e nem o texto). Alonga-se algumas vezes, mas não nos deixa perder a atenção e o interesse. Isso é um misto de vocação, habilidade e talento, seja lá o que isso for.
    Destaco:
    "enterrado os seus mortos - passo necessário para esquecê-los." Emocionei-me.

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