quarta-feira, 6 de outubro de 2010




A lógica de cada um

* Por Mara Narciso

Aconteceu no sertão selvagem de Minas Gerais, naquele tempo em que havia matas intactas pelos lados da Serra da Capivara. Chegar lá, só a cavalo, abrindo picadas no meio da vegetação fechada, onde onças eram temidas. A distância da civilização fazia surgir um quase dialeto e costumes autóctones. Muito do que se dizia ou se fazia ali não seria entendido ou aceito na cidade.

Os arranjos familiares eram amplos, onde cabiam dúzia e meia de filhos, alguns criados, agregados, trabalhadores sem se saber bem de onde vinham, as viúvas de irmãos e viúvas outras. As pessoas iam se amontoando naquela grande casa da fazenda e em anexos nas redondezas. O ajuntamento tinha sua lógica própria e pouco compreensível. Cedo no dia e na vida, quando a passarada, araras de todas as cores, acordavam, o labor principiava e os empregados corriam para as suas obrigações. A abolição dos escravos tinha acontecido há tempos, mas as pessoas locais trabalhavam como se cativos fossem, em troca de precária moradia e modesto alimento.

Casa de adobe com muitos cômodos e corredores, paredes internas em meia parede, chão de tijolos chatos, móveis rústicos, poucos utensílios, redes, água de cisterna, banho no rio, uma dureza de vida do século anterior, era o que se tinha.

As caçadas e as festas religiosas eram os acontecimentos, especialmente os festejos de junho, com subida do mastro, fogueira, cantoria, rezas e café com quitanda. Nessas ocasiões os vizinhos visitavam os compadres. Fora isso, só as raras sentinelas, casamentos e batizados. A mulher nada decidia e a autoridade suprema era a do marido, cujo pensamento tinha força de lei.

As frutas cresciam no pomar, quase floresta, por detrás da casa. A fartura e falta de costume de comer tais coisas, levavam ao apodrecimento da maior parte da produção. O isolamento criava mitos sobre os alimentos, e eram ordens obedecidas com medo. Havia tanta coisa que matava, se fosse misturada com leite, além dos alimentos reimosos que as mulheres menstruadas não podiam comer.

A família principal vinha aumentando ao ritmo de uma criança por ano. Foi quando nasceu a menina imperfeita, o 11º filho do casal. Tinha as duas pernas completamente arqueadas, sem qualquer outra anomalia visível. A mãe olhou aquele corpinho frágil, mal formado, com as pernas claramente defeituosas, e chorou dias, até que as lágrimas secaram por si. A avó, vendo a deformidade da neta e o choro interminável da filha, decidiu o que fazer. Foi ao mato, e de lá trouxe quatro pedaços de madeira, retos e lisos. Colocou uma tala de cada lado das pernas da recém-nascida, e as enfaixou envolvendo os membros e os artefatos com ataduras macias. Inicialmente foram amarradas com pouco ajustamento, e depois, diariamente, a senhora ia fazendo os apertos necessários. Médico, a avó nunca tinha visto nenhum. Não sabia em que iria resultar, mas tinha encanado braços usando esse método.

A mãe, conformada e confiante no tratamento em curso, esperava que as pernas da filha se endireitassem, e que ela, enfim, pudesse correr pela fazenda. A menina foi crescendo, e ficou normal. A habilidade e inteligência da avó curaram a menina. Quem a visse, mesmo observando em detalhe, não poderia supor a situação crítica em que havia nascido. Com as perninhas corretas, fazia tudo. Ninguém falava nisso. A vida daquele tempo era coordenada unicamente pelo tempo climático: hora de plantar, hora de colher; e a rudeza da roça não se amarrava no que já estava resolvido.

Depois nasceu um menino sem problemas. A menina tratada tinha quase quatro anos, o menino, dois anos, fora os anteriores. Então veio outra menina, também com as pernas arqueadas. Era a de número 13, a derradeira, a rapa do tacho, alguém para finalizar a família.

O pai foi chamado para decidir o que fazer com a recém-nascida defeituosa. A criança, ainda sem roupas, estava sob o lençol. Ele arribou o pano e olhou a situação. As duas pernas descreviam um arco quase perfeito, com um grande afastamento entre os dois joelhos, como em eterna posição de montaria. Pensou não mais que um segundo. Tirando as vistas, decretou a sorte da menina:
- Deus quis assim. O meu destino é criar uma filha com as pernas tortas. Proíbo de colocar as talas. Ela vai crescer do jeito que nasceu.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

8 comentários:

  1. Muito bom, Mara. Ao que tudo indica trata-se de uma história real, muitíssimo interessante. Coisas desse Brasilzão sem porteira. Abraços.

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  2. Que texto forte, Mara! Lembrei da época em que frequentava fazendas sem luz elétrica, com as casas antigas precisando de reforma...mas foi uma época boa, tudo muito simples e improvisado. Em seu texto, tudo se passava em um tempo mais remoto e as dificuldades pareciam ainda maiores do que as da minha época. Lindo, parabéns! Abraços!

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  3. Realmente, achei bem interessante o texto.
    A ignorância religiosa do pai em não deixar corrigir o defeito da recém-nascida. Antigamente os mais velhos diziam: "Faz mal misturar manga, abacaxi e outras coisas mais com leite"
    Parabéns, Mara!
    Abração do,
    José Calvino
    RecifeOlinda

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  4. lembrei de alguém assim.. pernas arqueadas, o anjo das pernas tortas que ganhou o mundo e fez mais dribles que o Pelé...Garrincha!!!parabéns pelo texto! abs. Aliene

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  5. Situações que podem estar acontecendo nesse exato momento, em alguma tapera...
    Parabéns Mara

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  6. Gente, agradeço pelos comentários que sempre acrescentam muito ao texto. Vocês somam com experiências, visões e interpretações diversas. Muito obrigada!

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  7. Mara querida

    Tenho a impressão de que este fato aconteceu, não foi? Incrível foi a decisão do pai, de deixar a última filha com problemas, não é? Um peso que ela carregou a vida toda.Parabéns! Belo conto.Bjs

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  8. Risomar, eu conheci a vítima, já velhinha, enquanto eu era menina. Uma história tão dolorosa quanto real.

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