

O crítico imaginário
(Melodrama serial)
*Por Luís Antonio Giron
II
A mãe, Adelaide, progenitora e esposa de seios fartos e odor acre das mestiças ibéricas, seguia a cortar sabão na cozinha, com extrato de macela e funcho nativo, para ser vendido mais tarde no armarinho. Um tanto derreada pela situação difícil, tempos bicudos a perturbar os folguedos matrimoniais, ela cantarolava baixinho uma certa canção amarga dos Açores. Carolina Leopoldina rodopiava sonhadora pela casa, obtivera a permissão dos pais para participar de um convescote com as amigas no sábado, nas nascentes verdejantes dos arrabaldes da vila, e com elas seguiria o casto Astolfo, irmão de Cristina, sua confidente. Astolfo, aprendiz dos salmos e orações jesuítas mas de vocação ainda incerta, a alma juvenil titubeando entre os tornozelos roliços das virgens platinas e a santidade úmida dos mosteiros, não sabia, mas com seu ar ingênuo de menino-de-tia enchia de ritmos e tambores crioulos os crepúsculos da jovem.
“Ai, ai, ai Astolfo, valha-me Santantônio da Patrulha”, ela gemia, a vozinha febril a girar também pela casa, a cabeleira enredando-se no suor da testa, ela na ponta dos pés, girando feito uma piorra borracha até se estatelar sobre a poltrona da sala e rir até perder fôlego e tino.
Dona Adelaide ralhava da cozinha: “A menina sem juízo e o borrabotas folgazão fechado nos cômodos a inventar modos...”
De temperamento largo, ultimamente ela andava irritadiça com o serviço pesado a lhe consumir carnes e unhas, a tina de roupas, a louça, a limpeza das peças sem a ajuda das criadas trocadas por promissórias vencidas com os charqueadores das bandas do sul. O único escravo restante, o negrinho Isaías, era mais da família do que serviçal pras lides pesadas de uma casa a ser mantida asseada, ele já beirando os 30 anos mas aparentando bem menos pela compleição miúda e gestos delicados, lembrando um piazito impúbere de turbante e colar de conchas de oito voltas a tilintar nas passadas curtas.
Assim ele chegou da rua, num minueto, depois de entregar tecidos e fitas pro sinhô na casa das irmãs enxantês na rua alta. Saltitante, ele correu para contar a Carolina, ainda esparramada no meio da sala, que até ganhara uns tostões para desenhar os vestidos e ensinar as meninas Saint-Claire a arrumação das fitas em tranças e laçarotes.
“Merci, merci”! ele exultava, imitando, gracioso, o leve inclinar de demoiselles em reverência agradecida. Porém, ao espiar a patroa envolta em resfolegos e vapores, os sovacos em meia lua de suor a empapar o pano, corpo curvado sobre balde e escova a pentear uma crina imaginária sobre o chão molhado, ele suspendeu o relato e desapareceu pela porta, e em trote apressado desceu a rua para logo se apresentar de volta no armarinho, onde, depois de espanar as prateleiras se debruçou sobre o balcão alto para rabiscar caudas, decotes e plissados em folhas de embrulho.
Da sua escrivaninha junto à janela, a pena alta a refazer contas no caderno de entradas e saídas, Mário Manuel Gonçalves observa o criado com certa complacência. De sua mãe já lembrava pouco - escrava de ancas largas e canelas finas, bons dentes num sorriso escasso - mas o bastante para saber que podiam ser seus os traços confusos do negrinho que nascera sem choro num domingo de ramos, a mulher parindo sob a escada amparada apenas pelo estofo gasto de uma sela andaluz. Depois, ela mesma limpando os trapos, a cria, e mais tarde a oferecendo aos patrões em serventia para seguir os passos do negro Malaquias, bom ferreiro e o melhor ginete que já se vira. Souberam depois que o homem se afogara ao cruzar o rio dos Sinos montado num potro em treino de monta, dia de enchente, e que o novo patrão enterrara o bicho com honras da corte e deixara o corpo do negro insepulto, duas curvas rio abaixo. De Filadélfia, a negra em questão, nunca mais tiveram rastro.
Então, o negrote ficara na casa. Os Gonçalves se orgulhavam de ser bons patrões e zelosos com a criadagem, ocorrendo cá e lá um certo rebuliço dos varões com as negras de bom corpo, sendo que nem Mário na sua madureza sabia se cediam por medo, deleite ou resignação.
O sol projetava nuances encarnadas sobre o Guaíba. Leopoldo seguia a traçar garatujas sem perceber que a penumbra assombrava o quarto, esfumando os contornos de linhas e pensamentos. Tomado de possessão criadora, tão imerso na fantasia quanto seus fantásticos personagens, fazia a realidade se embrenhar na textura de seu texto com tamanha vivacidade que ele mesmo já tinha dificuldade de separar imaginação de memória – aliás, boas irmãs nos seus sonhos e delírios. Quando a noite já se apresentava nas primeiras aragens do dia, e os profetas, numa procissão fantasmagórica passaram a acender os lampiões da iluminação pública, ele juntou as folhas numa pilha amarrada com barbante e, satisfeito, foi dar às portas de seu amigo José Joaquim de Campos Leão, professor das primeiras letras no Liceu Municipal e grande admirador do Improvável, do Raro e do Extraordinário. Leão, como era chamado, pela juba castanho-clara que ostentava, e pela voracidade com que se arremetia às conquistas amorosas, recebeu-o com um ar cansado e os longos dedos da mão feito batutas a conduzir uma sinfonia silenciosa, orquestra primorosa de sopros e harpas, ele diria depois. Leopoldo, já sabedor das lunatices do amigo, sentou-se sobre o catre amarfanhado do quarto de pensão e esperou o fim da tragicomédia e mesmo os aplausos e bis da platéia que José, em lágrimas, agradecia. Estavam levando naquela pensão a comédia Deus em Cima e o Diabo em Baixo, de autoria de Campos Leão, um embate entre as forças do Bem e do Mal na alma de um capitão do mato, uma adaptação nativa do Dom João de Maraña do Alexandre Dumas. Anjo bom e anjo mal soprano nos ouvidos do pobre ignorante, metido nas selvas, sem saber o que responder a um e a outro e, na dúvida, botava um no prego e outro na ferradura porque quem é do mato não se aperta.
- Leopoldo, a vida é dura para quem escreve.
- Eu sei lá.
- Leopoldo, eu quero só viver de escrever.
- Não é possível.
- Vamos ler outra comédia?
Leram com fervor. Só depois, sufocada a emoção enlevada do artista, puderam conversar sobre as idéias de Leopoldo, e, esquecendo-se das horas e das responsabilidades do outro dia, entraram a madrugada numa espécie de duelo de imaginativo delírio. Como que enlouquecidos pela excitação crescente e pelos enredos cada vez mais rebordados e luxuriantes de rica e pura fantasia, entregaram-se ao dueto com furore. Mais tarde, a manhã surpreendeu os amigos num transe de tabaco e zurrapa.
José seguiu, cambaleante, para as aulas e para os “pequenos demônios otomanos de Sulaiman”, como ele chamava os seus pupilos endemoninhados. Leopoldo releu o primeiro folhetim, sobre espetáculo para poucos em endereço exclusivo a ser mantido sob a capa violável da discrição do crítico, que ele redigira ainda tomado pelos gestos, os movimentos e a cadência lasciva das irmãs siamesas de Bangcoc, que o A Feira exibiria na estréia de fato de Honesto Iago, num texto cheio de lirismo patético que chocou os leitores e entreteu as rodas de mate pelos dias que se seguiram.
Ei-lo Iago, de bolsos vazios e cérebro borbulhante de idéias as mais deliqüescentes. Devia apoiar-se na escrivaninha alta, pegar da pena para lançar novas tintas na tira a ser levada ao redator-em-chefe do jornal.
(Continua)
*Jornalista, atuante em São Paulo desde 1982. Autor de sete livros, entre romances, ensaios e contos, sendo cinco já publicados e mais dois no prelo. Prepara, para breve, mais um lançamento: “Ópera Nacional, um sonho em vernáculo” (ensaio da história cultural).
(Melodrama serial)
*Por Luís Antonio Giron
II
A mãe, Adelaide, progenitora e esposa de seios fartos e odor acre das mestiças ibéricas, seguia a cortar sabão na cozinha, com extrato de macela e funcho nativo, para ser vendido mais tarde no armarinho. Um tanto derreada pela situação difícil, tempos bicudos a perturbar os folguedos matrimoniais, ela cantarolava baixinho uma certa canção amarga dos Açores. Carolina Leopoldina rodopiava sonhadora pela casa, obtivera a permissão dos pais para participar de um convescote com as amigas no sábado, nas nascentes verdejantes dos arrabaldes da vila, e com elas seguiria o casto Astolfo, irmão de Cristina, sua confidente. Astolfo, aprendiz dos salmos e orações jesuítas mas de vocação ainda incerta, a alma juvenil titubeando entre os tornozelos roliços das virgens platinas e a santidade úmida dos mosteiros, não sabia, mas com seu ar ingênuo de menino-de-tia enchia de ritmos e tambores crioulos os crepúsculos da jovem.
“Ai, ai, ai Astolfo, valha-me Santantônio da Patrulha”, ela gemia, a vozinha febril a girar também pela casa, a cabeleira enredando-se no suor da testa, ela na ponta dos pés, girando feito uma piorra borracha até se estatelar sobre a poltrona da sala e rir até perder fôlego e tino.
Dona Adelaide ralhava da cozinha: “A menina sem juízo e o borrabotas folgazão fechado nos cômodos a inventar modos...”
De temperamento largo, ultimamente ela andava irritadiça com o serviço pesado a lhe consumir carnes e unhas, a tina de roupas, a louça, a limpeza das peças sem a ajuda das criadas trocadas por promissórias vencidas com os charqueadores das bandas do sul. O único escravo restante, o negrinho Isaías, era mais da família do que serviçal pras lides pesadas de uma casa a ser mantida asseada, ele já beirando os 30 anos mas aparentando bem menos pela compleição miúda e gestos delicados, lembrando um piazito impúbere de turbante e colar de conchas de oito voltas a tilintar nas passadas curtas.
Assim ele chegou da rua, num minueto, depois de entregar tecidos e fitas pro sinhô na casa das irmãs enxantês na rua alta. Saltitante, ele correu para contar a Carolina, ainda esparramada no meio da sala, que até ganhara uns tostões para desenhar os vestidos e ensinar as meninas Saint-Claire a arrumação das fitas em tranças e laçarotes.
“Merci, merci”! ele exultava, imitando, gracioso, o leve inclinar de demoiselles em reverência agradecida. Porém, ao espiar a patroa envolta em resfolegos e vapores, os sovacos em meia lua de suor a empapar o pano, corpo curvado sobre balde e escova a pentear uma crina imaginária sobre o chão molhado, ele suspendeu o relato e desapareceu pela porta, e em trote apressado desceu a rua para logo se apresentar de volta no armarinho, onde, depois de espanar as prateleiras se debruçou sobre o balcão alto para rabiscar caudas, decotes e plissados em folhas de embrulho.
Da sua escrivaninha junto à janela, a pena alta a refazer contas no caderno de entradas e saídas, Mário Manuel Gonçalves observa o criado com certa complacência. De sua mãe já lembrava pouco - escrava de ancas largas e canelas finas, bons dentes num sorriso escasso - mas o bastante para saber que podiam ser seus os traços confusos do negrinho que nascera sem choro num domingo de ramos, a mulher parindo sob a escada amparada apenas pelo estofo gasto de uma sela andaluz. Depois, ela mesma limpando os trapos, a cria, e mais tarde a oferecendo aos patrões em serventia para seguir os passos do negro Malaquias, bom ferreiro e o melhor ginete que já se vira. Souberam depois que o homem se afogara ao cruzar o rio dos Sinos montado num potro em treino de monta, dia de enchente, e que o novo patrão enterrara o bicho com honras da corte e deixara o corpo do negro insepulto, duas curvas rio abaixo. De Filadélfia, a negra em questão, nunca mais tiveram rastro.
Então, o negrote ficara na casa. Os Gonçalves se orgulhavam de ser bons patrões e zelosos com a criadagem, ocorrendo cá e lá um certo rebuliço dos varões com as negras de bom corpo, sendo que nem Mário na sua madureza sabia se cediam por medo, deleite ou resignação.
O sol projetava nuances encarnadas sobre o Guaíba. Leopoldo seguia a traçar garatujas sem perceber que a penumbra assombrava o quarto, esfumando os contornos de linhas e pensamentos. Tomado de possessão criadora, tão imerso na fantasia quanto seus fantásticos personagens, fazia a realidade se embrenhar na textura de seu texto com tamanha vivacidade que ele mesmo já tinha dificuldade de separar imaginação de memória – aliás, boas irmãs nos seus sonhos e delírios. Quando a noite já se apresentava nas primeiras aragens do dia, e os profetas, numa procissão fantasmagórica passaram a acender os lampiões da iluminação pública, ele juntou as folhas numa pilha amarrada com barbante e, satisfeito, foi dar às portas de seu amigo José Joaquim de Campos Leão, professor das primeiras letras no Liceu Municipal e grande admirador do Improvável, do Raro e do Extraordinário. Leão, como era chamado, pela juba castanho-clara que ostentava, e pela voracidade com que se arremetia às conquistas amorosas, recebeu-o com um ar cansado e os longos dedos da mão feito batutas a conduzir uma sinfonia silenciosa, orquestra primorosa de sopros e harpas, ele diria depois. Leopoldo, já sabedor das lunatices do amigo, sentou-se sobre o catre amarfanhado do quarto de pensão e esperou o fim da tragicomédia e mesmo os aplausos e bis da platéia que José, em lágrimas, agradecia. Estavam levando naquela pensão a comédia Deus em Cima e o Diabo em Baixo, de autoria de Campos Leão, um embate entre as forças do Bem e do Mal na alma de um capitão do mato, uma adaptação nativa do Dom João de Maraña do Alexandre Dumas. Anjo bom e anjo mal soprano nos ouvidos do pobre ignorante, metido nas selvas, sem saber o que responder a um e a outro e, na dúvida, botava um no prego e outro na ferradura porque quem é do mato não se aperta.
- Leopoldo, a vida é dura para quem escreve.
- Eu sei lá.
- Leopoldo, eu quero só viver de escrever.
- Não é possível.
- Vamos ler outra comédia?
Leram com fervor. Só depois, sufocada a emoção enlevada do artista, puderam conversar sobre as idéias de Leopoldo, e, esquecendo-se das horas e das responsabilidades do outro dia, entraram a madrugada numa espécie de duelo de imaginativo delírio. Como que enlouquecidos pela excitação crescente e pelos enredos cada vez mais rebordados e luxuriantes de rica e pura fantasia, entregaram-se ao dueto com furore. Mais tarde, a manhã surpreendeu os amigos num transe de tabaco e zurrapa.
José seguiu, cambaleante, para as aulas e para os “pequenos demônios otomanos de Sulaiman”, como ele chamava os seus pupilos endemoninhados. Leopoldo releu o primeiro folhetim, sobre espetáculo para poucos em endereço exclusivo a ser mantido sob a capa violável da discrição do crítico, que ele redigira ainda tomado pelos gestos, os movimentos e a cadência lasciva das irmãs siamesas de Bangcoc, que o A Feira exibiria na estréia de fato de Honesto Iago, num texto cheio de lirismo patético que chocou os leitores e entreteu as rodas de mate pelos dias que se seguiram.
Ei-lo Iago, de bolsos vazios e cérebro borbulhante de idéias as mais deliqüescentes. Devia apoiar-se na escrivaninha alta, pegar da pena para lançar novas tintas na tira a ser levada ao redator-em-chefe do jornal.
(Continua)
*Jornalista, atuante em São Paulo desde 1982. Autor de sete livros, entre romances, ensaios e contos, sendo cinco já publicados e mais dois no prelo. Prepara, para breve, mais um lançamento: “Ópera Nacional, um sonho em vernáculo” (ensaio da história cultural).
Que maravilha! As descrições têm um quê machadiano. Pensei tratar-se de um clássico pela magnitude da escrita.
ResponderExcluirDestaco: "os sovacos em meia lua de suor a empapar o pano, corpo curvado sobre balde e escova a pentear uma crina imaginária sobre o chão molhado" além do nascimento do menino entre trapos e sela, e do pai insepulto. Forte demais!