segunda-feira, 6 de julho de 2009




Dele vou me lembrar como a um doce forró

* Por Eduardo Murta


Exótico como aquele haviam aparecido poucos por ali. Longilíneo, que chegava a lembrar típicos personagens de painéis do velho Egito. E exageradamente enigmático. Fazia mais de meia hora que pedira, só com o dedo indicador revelando os rótulos, um autêntico rabo-de-galo. Se postara à mesa ao fundo e, ajeitando o chapéu, fazia giros lentos em periscópio, esquadrinhando a gente do lugar. Cautela dele. Temor deles. Os exames soando a miradas de corujas.

O gelo vai se quebrar no instante em que a bola branca romper as bordas da sinuca e estacionar exatamente aos pés do estranho. A cena imitava atmosfera de faroeste: a esfera rolando e a platéia em suspense. Houve quem levasse os dedos à cintura, a conferir se a arma estava mesmo lá. Era gesto natural na distante Santana do Manjericão. Isolada a ponto de rádio a pilha ser a mais moderna parafernália por lá.

Talvez fosse zelo demasiado. O forasteiro bem que alimentou o mistério. Parou o objeto com o pé esquerdo – bota caprichosamente lustrada em preto – e foi vagarosamente arqueando o olhar em direção à audiência. Pronto se levantou. As respirações se acelerando, deu de ombros ao peso do ambiente e marchou à mesa de bilhar. Sem dizer nada, reposicionou o jogo como se fosse uma nova partida.

Assentou à lateral um maço de notas. Examinaram. Eram em dólar. A clientela do Bar dos Anjos mais que triplicou a desconfiança sobre tudo a que se assistia. O sujeito desafiara Zé Fino e Bodoqueira no taco? Ah, iria comer poeira. Veriam, pois!! A primeira jogada do homem, de quem sequer se ouvira o mais leve sussurro, encaçapou logo o 7 e o 15. Depois, fez fila. Uma após outra. Em finíssima classe.

E parou diante dos perdedores atônitos. Sem exatamente saber o que lhes custaria a derrota. Não pensou em dinheiro. Enquadrou o interior da birosca, detalhe por detalhe, a que se inspirasse. Deu com uma frase em tabuleta de madeira, ali atribuída a Camus: “Prefiro errar com o sol a acertar com a história”. Uauuuu!!!!! Elegera o local certo. Se aproximou da dupla e sugeriu, sotaqueado, apontando o balcão: “Dance”. O que?!?! Dançar?!?!

Forrozeiros barrigudos, os dois improvisaram um remelexo que virou comédia em segundos. E o forasteiro sinalizando que não encerrassem. Deslumbrado com os movimentos. Como fizera ao entrar, indicou ao balconista as bebidas para o rabo-de-galo. Encomendou três, e logo era uma minifesta, ele à quarta dose gargalhando com os nativos. Sem falar uma só palavra em português. Julgavam que fosse “das” Europa.

A mímica, assim, se converteu em idioma básico do encontro. E ele, como um menino, não se incomodava em desenhar quando era preciso se fazer entender. Não demorou a mostrar aos novos amigos do que mais gostava. Desfez-se do capote vinho, revelando a blusa de seda branca em contraste à pele num negro ébano. Subiu à plataforma do bar e dançou em forma que jamais haviam visto. Deslizava. Flutuava!!, juravam. Era uma reinvenção do corpo, um toque celestial e, vá explicar, sob delicado tempero diabólico.

No fundo, não mais o enxergavam como gringo, mas como alguém de um mundo que não este. E o dono da bodega, sob entusiasmo, correu ao rádio, a que musicalizasse aquele espetáculo. Maldita hora! Os olhos do estranho ainda cruzaram com os dele, como suplicando que não. Tudo, súbito, se iluminou, como flashes espocassem ao rosto do estrangeiro, numa incômoda, reluzente e sofrida branquidão.

Foi que, em lugar de música, o noticiário resumiu: naquela noite, aos 50 anos, morrera um certo Michael Jackson, rei de um certo pop. Da visita relâmpago ao Bar dos Anjos, as imagens foram se desintegrando num instantâneo que doeu naquela gente. Zé Fino tocou-lhe a luva, na luta vã a que não partisse. Hoje, conta e ninguém crê. Na tristeza, dança. A que o relembre por todo o sempre como a um doce forró.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.


Um comentário:

  1. Um clip no sertão? O desconhecido chega, assombra, intriga e mexe com a imaginação de todos. Depois, claro, vira lenda, e não apenas graças do megastar, mas, ainda, em virtude desta crônica cheia de mistérios e magia, além de "clima" intrigante. Valeu, Murta!

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