Meninos, eu vi!
* Por
Risomar Fasanaro
Ali estavam eles diante de
mim, na ONE – Ordem Nacional dos Escritores, em Sorocaba, na noite
do dia 7. Guilem Rodrigues da Silva e Pedro Viegas. Dois marinheiros
desgarrados que há muito não se viam e agora se encontravam. Era o
lançamento do novo livro de Guilem Rodrigues da Silva, poeta, e que
embora brasileiro, nascido na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do
Sul, é presidente da Associação dos Escritores da Suécia, onde
vive desde 1966, além de juiz de segunda instância na cidade de
Lund, e Viegas também escritor, autor de Trajetória
Rebelde em que
narra sua participação na luta contra a ditadura de 1964, ali
estava como jornalista e fotógrafo para documentar a festa de
lançamento do livro de poesias do amigo e companheiro da Marinha,
Saudade e uma Canção
desesperada.
Dois marujos acostumados a
enfrentar tormentas, tempestades. E que um dia viram suas naus
perderem o rumo, serem levadas pela tormenta, pelos vendavais, pelos
maremotos. .
Em uma noite escura um
terrível tornado quase lhes estraçalhou o barco, os sonhos a vida,
mas, milagrosamente, conseguiram sobreviver. Foram atracar em
outros portos, diferentes daqueles que conheciam, mas onde, como
náufragos, foram salvos e acolhidos e, assim, conseguiram
sobreviver.
Ali iniciaram uma nova
aventura. A de conviver com outros povos, a de aprender
outros falares, outros costumes, viverem estações em que
antes eram de flores e ali eram de neve.
E dia após dia passaram
a praticar o exercício da memória, porque longe de seu chão
é preciso que a árvore não esqueça suas raízes, suas
folhas, nem seus frutos. Distante da terra natal é imprescindível
relembrar os rastros que se deixou. É se perguntar sempre como é
que é mesmo o canto dos sabiás? De que tom é o verde
das palmeiras? E cantar, “mais que nunca é preciso cantar” a
cantiga de ninar que um dia nos embalou. E ter na lembrança o sabor
do feijão feito pela mãe e o perfume da mulher amada.
Tomada pela imaginação,
pensei em tudo isso. Nos rumos que aquelas duas vidas tinham tomado
quando partiram para o exílio. E não só neles, pensei em todos que
a isso foram forçados, ainda que ali não estivessem presentes
fisicamente.
Guardariam dores daqueles
primeiros dias e noites distantes de sua terra natal? Teriam
lembranças da saudade que reprimiram longe de seus entes queridos?
Relembrariam as revoltas que tiveram de engolir, por não conhecer
sequer a língua das terras que os abrigaram para desabafar, contar,
desfiar seus rosários de dores, logo que lá chegaram? Ou tudo
aquilo estaria esquecido? Todos esses pensamentos me passaram pela
cabeça, quando os dois se encontraram.
De volta ao porto de onde
nunca deveriam ter saído, presenciei aquele encontro. Já não são
tão jovens, mas ainda com muitos sonhos, apenas agora emoldurados
pelo branco dos cabelos que um dia foram negros. Ambos
estão com mais de
cinqüenta anos. E havia mais de vinte que não se viam.
Mas ali, naquele instante, eu
já não tinha diante de mim dois homens, dois marujos que quase
tinham naufragado durante o tornado. O que eu via eram dois meninos.
Dois garotos peraltas que tendo fugido de uma prova difícil do
colégio, riam e gesticulavam relembrando como tinham feito
para escapar dos professores, de que forma enganaram os porteiros da
escola e tinham fugido aos castigos do diretor.
E riam. Riam felizes
perguntando sobre os outros companheiros de rebeldia. Onde estavam, o
que tinha sido deles? Algumas vezes os olhos se tornavam tristes,
marejados, ao relembrar os que não tinham escapado aos castigos, e
por isso já não estavam entre eles.
Presenciando tudo aquilo,
tirei minha máquina fotográfica da bolsa e resolvi registrar aquele
reencontro, registrar aquele momento histórico, o encontro
afetivo de duas pessoas tão solidárias, e que se gostam tanto.
Tentei calar o peito, controlar a emoção, para que as fotos saíssem
boas, mas não deu. Elas registraram o pulsar do meu coração; por
isso saíram todas tremidas.
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e
escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra
vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto
por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário