Ódio adorado em altares
* Por
Mara Narciso
Vingança se guarda no
freezer, ódio na lapidação. Muitos aprimoram seu veneno, frutificando seu ódio,
matéria prima do mal. Adoradores do que sentem, purificam-no e o jogam ao
vento, para que se alastre. Parecem felizes ao eliminar grupos inimigos. Da
caixa de Pandora, mentes vingativas arrancam mil pragas. A psiquiatria entende
tal virulência destrutiva, que esfarela o inimigo. Um mendigo atrapalha sua
saída, você o esmaga com seu carro. Alguém o incomoda; você o derruba. Foi
destratado? Atira, mas não basta um tiro. É preciso dezenas deles, com matança
indiscriminada. Mata, esquarteja, queima, joga os pedaços por aí ou os dá aos
cães.
O enteado incomoda, o
pai receita um anestésico, a madrasta leva a criança para longe, e com a ajuda
de vizinhos, mata e enterra em cova rasa. Para livrar-se do choro da enteada, a
mulher a espanca, joga no chão, o pai a arrasta, sobe na cama, corta a rede de
proteção, carimba sua camiseta com poeira, pega a criança e a joga do sexto
andar. A crueldade exacerbada, tortura e violação de incapaz se intensificaram
e quase toda a ação é vista pelas câmeras de segurança. Matar é um
mega-espetáculo.
Mulher se satisfaz
impondo sofrimento inominável: onze anos, braços para cima com punhos
amarrados, língua cortada com alicate, unhas arrancadas, boca entupida com
pano, obrigada a comer fezes de cachorro. A torturadora queria a menina para
adoção. Já a juíza levou a criança para casa, para adaptação. A imagem do rosto
da vítima inchado e roxo pelos socos ficou. O rapaz entrega a irmã de cinco
anos para homens sob efeito de drogas. A mãe leva a filha de nove anos para
traficantes. No final das sevícias e torturas, corpo queimado por cigarro e
desaparecimento. Corpos somem em lagoas, malas, paredes, cisternas. O ódio
encontra muitos caminhos.
Criança tortura
criança, com transmissão ao vivo. Mãe sangra filha, na área genital, com
alicate de cutícula, pai mata filha com veneno para não pagar pensão,
ex-namorado mata ex-namorada de joelhos, a facadas, durante uma missa. Uma
transeunte reclama de dois homens urinando na rua. Estes correm para bater em
quem os censura; alguém entra no meio e tem sua cabeça esfacelada por chutes.
Grupos de torcidas rivais se encontram e um desgarrado tem seu corpo
liquidificado por barras de ferro.
O relacionamento se
desfaz, o ódio é tratado com fermento. Antes de se concretizar, a vingança vira
mensagens agressivas. Algo grandioso tem de acontecer para virar manchete. Mata
12 pessoas, entre elas a ex-mulher e seu filho, e se suicida, como num filme de
ação.
A roleta russa de voar
quase no zero, um dia acerta muitas cabeças. A economia de combustível mata 71
pessoas e comove o mundo. Os crimes são infindáveis, impossíveis de digerir. E
quando um deles se dilui na memória, mais mil chegam em imagens de suicidas e
mortos desfigurados, que ficam à visão de todos. Quem repassa se diverte. Matar
é pequeno diante da ânsia por divulgação.
Os barris de pólvora
estão por toda parte. Nenhum grupo escapa ao “festim diabólico”: direita,
esquerda, ateu, religioso, velho, criança, de que raça for, praticam mortes,
comemorando o ódio, sentimento hoje mais transmissível que o Vírus Ebola. É preciso
importar martírios medievais. Morte por decapitação vira rito.
Desde 2013 o Brasil
está rachado. Diante dos últimos fatos a opinião publica e as autoridades se
mantêm divididas, mas o ódio permanece inteiro. Os mesmos que se julgam
merecedores do céu, desaprovando a descriminalização do aborto em defesa da
vida festejam a pena de morte imposta aos detentos. Expressões como campo de
guerra, violência extrema e banho de sangue estão banalizadas. A degola de
dezenas de pessoas, cada uma com pelo menos seis litros de sangue acabou
roubando as palavras, ficando difícil de escrever/descrever.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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