Migrações
e construções sócio-culturais – um estudo de caso
* Por
Urda Alice Klueger
1. INTRODUÇÃO
Enquanto pensava, aqui
diante do computador, em como começar este texto, me veio à lembrança umas fotos
que recebi, faz poucos anos, dos Açores. Creio que por dois ou três anos
colaborei com um jornal de lá, o que me granjeou diversas amizades naquela
terra européia perdida no meio do mar, e um dos meus leitores, um escritor já
muito idoso e dado ao hábito de muito fotografar, me mandou lindas fotos do
interior da ilha em que morava, São Miguel. Sabia, já naquela altura, que,
partidas por sucessivas divisões feitas por heranças ao longo de mais de cinco
séculos, as terras açorianas estavam divididas em propriedades cada vez mais
minúsculas, e as fotos que recebi mostravam bem o que sabia, mas eram lindas
aquelas fotos, com os pequenos lotes de terra cuidadosamente cultivados ou, no
mais das vezes, transformados em pastos para um gordo gado que abastecia a Europa
de leite, queijo e carne.
Além de lindas, as
fotos me despertaram outra curiosidade: as cercas. Com tão minúsculos pedaços
de terra, era impossível que logo no primeiro plano das fotos já não existissem
as cercas, e lá estavam elas, de madeiras irregulares, cortadas, dispostas e
pregadas irregularmente, muito diferentes das cercas às quais eu estava
acostumada desde a minha infância.
Como eram as cercas da
minha infância e as cercas que até hoje conheço e convivo no Vale do
Itajaí/Brasil? Como a parte deste Vale aonde vivo é de colonização alemã, as
cercas quase sempre são feitas de materiais muito uniformes (estaquetas, telas,
tijolos, sejam quais os materiais que forem), numa uniformidade que levam a
pensar no senso estético que, de maneira geral, agrada ao descendente dos
moradores dos antigos estados alemães que aqui vivem. Não é possível que se
generalize e se diga que tal gosto é um gosto exclusivo dos descendentes de
alemães, pois hoje é muito grande a quantidade de etnias que convive no Vale do
Itajaí, mas, no mais das vezes, as cercas das casas e de outras propriedades
mantêm uma simetria que, ao longo da minha vida, fui cada vez mais associando à
coisa cultural do alemão.[1]
Na minha adolescência
tive a oportunidade de conviver largamente com as gentes de origem lusa que
então viviam em Armação do Itapocoroy, município de Penha/SC, e quando, na
década de 1990, recebi aquelas fotos dos Açores, lembrei-me imediatamente das
cercas que então eram usadas pelos pescadores de Armação do Itapocoroy, tão
irregulares e sem simetria em 1970 quanto as açorianas de 1970.[2]
As considerações acima
são um tanto quanto antropológicas, mas foi um exemplo que me veio com muita
força, quando comecei a pensar no estudo de caso que quero em fazer. É um
exemplo que ilustra bem que dentro das etnias européias, consideradas “brancas”
pelos projetos de formação do povo brasileiro que são criados após a segunda
metade do século XIX, etnias que, a princípio, eram bem-vindas em pé de
igualdade pelas elites brasileiras dos séculos XIX e XX, mas onde havia muitas
diferenças culturais, e que mesmo entre elas criavam-se sérios problemas de
aceitação ou não pelos indivíduos que as compunham, quando, de alguma maneira,
se “mesclavam” ou “misturavam”. Considero que este preâmbulo é necessário para
entrar no meu estudo de caso.
2. O ESTUDO DE CASO
2.1 O LUGAR DE ORIGEM
A pessoa “estudada”,
no caso, é uma mulher que hoje (2004), está com 83 anos e é proveniente de uma
região de colonização lusa próxima do litoral de Santa Catarina, Tijucas. Essa
região tem uma colonização bastante antiga feita por portugueses e seus
descendentes, tendo, no final do século XIX, tido também uma colonização
italiana. A pessoa estudada prefere não se identificar e pediu para ser chamada
de Gilda. Além de não admitir a sua identificação, Gilda negou-se a gravar uma
entrevista de História Oral. Os depoimentos que obtivemos dela são produto de
uma longa convivência, onde as histórias foram sendo contadas aos poucos.
Gilda nasceu em 1921
bastante afastada do centro nervoso do Brasil, isto é, o Rio de Janeiro, lugar
onde estava o governo central do país, onde se decidiam as coisas da política,
da economia, da cultura, onde, naquela altura de Primeira República, os então
cientistas procuravam programar um futuro étnico para o Brasil, que tinha como
eixo central um ideal de branqueamento. Giralda Seyferth[3] vai nos falar mais a respeito:
“O ideal de
branqueamento ganhou o reforço das teorizações racistas intensificadas no final
do século XIX e tornou-se tema de uma incipiente “ciência das raças” à
brasileira, que deu respaldo acadêmico às especulações sobre o poder
branqueador do processo de miscigenação herdado dos tempos coloniais. Assim, ao pessimismo de Nina Rodrigues, que
imaginava o Brasil irremediavelmente atrasado em face da presença substantivas
de “raças inferiores” e “mestiços inferiores”, opõe-se o otimismo de João B. de
Lacerda, antropólogo do Museu Nacional, que visualizou a possibilidade do
branqueamento fenotípico do brasileiro do futuro por meio de um processo
seletivo de mistura racial num prazo de três gerações.(...)”.
Com poucas palavras
Giralda Seyferth resume o pensamento que corria pelo Brasil, nesse tempo, sobre
a futura formação do seu povo, o que estava fazendo com que, desde a década de
1820, se pensasse em trazer imigrantes para o nosso país, principalmente imigrantes
“brancos”, de origem européia.
Gilda era uma
brasileira branca, de origem européia. A princípio, sua vida não teria maiores
problemas quanto à sua cor e/ou etnia, já que era muito clara, de cabelos
castanhos e olhos verdes. Não era uma pessoa que tivesse que passar pelo
cientificismo “branqueador” que existia no país. Apesar da sua origem lusa,
crescera ela na casa do padrinho, agricultor, imigrante italiano, e muito
absorvera da cultura italiana do padrinho e demais parentes dele, tanto
costumes, quanto forma de religião, um pouco da língua, etc. O padrinho e os
costumes absorvidos também eram de proveniência européia, de “gente branca”, e
a mescla de sua origem lusa com a cultura italiana do padrinho não chegou a lhe
causar maiores problemas. Ela freqüentou a escola possível na época, que eram
três anos de ensino básico, e teve algumas regalias que não eram comuns a todos
os brasileiros desse tempo onde a comunicação era incipiente, como a
convivência com um padre holandês que era doutor em Teologia[4], e do qual, até
hoje, lembra e relembra os ensinamentos, bem como a convivência com algumas
lideranças locais, italianos de cultura
européia moderna, diferente da maioria dos brasileiros daquela localidade, e
com os quais estava em contato através do padrinho e da igreja.
Gilda cresceu no
momento em que o Brasil começava um projeto de industrialização de base
nacionalista, que se alastrara até Santa Catarina, formando os três primeiros
núcleos industriais do Estado: Blumenau, Brusque e Joinville. O país, que até
então fora rural, começava a necessitar de mão-de-obra especializada nos
diversos ramos da indústria, e era necessário que houvesse excedentes nessa
mão-de-obra, para garantir seu funcionamento sem interrupções. A falta de
excedentes sempre colocaria as empresas industriais em risco de alguma greve,
coisa que o Capitalismo não podia permitir, pois paralisações poderiam levar a
falências ou prejuízos. Assim, na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas
vai direcionar a legislação do país para que passe a causar entraves aos
agricultores, forçando muitos deles a abandonar a agricultura e a mudar-se para
as cidades industriais, atraídos pelo emprego que então era conseguido facilmente.[5]
Gilda contou como eram tais dificuldades: até àquela data um agricultor podia
matar um porco, vender sua carne, sua banha e demais derivados sem nenhum
problema – a partir das novas leis, se um agricultor quisesse vender uma lata
de banha, teria que ter um contador, organizar uma contabilidade, comprar caros
selos que significavam os impostos. Tornava-se bastante difícil a vida de um
agricultor. Assim, como tantos outros agricultores, ela acabou deixando a vida
agrícola e mudando-se para a cidade de Blumenau, onde de imediato conseguiu
emprego na antiga Empresa Industrial Garcia.
Blumenau era um outro
mundo, no sentido de ter outra colonização, outros costumes, outra língua e ser
industrializada, e ela afirma até hoje: “Deram-me emprego porque eu era bem
crescida, bem saudável, bem branca.” Tinha 17 anos, então, e na Europa estava a
rebentar a Segunda Guerra Mundial.
2.2 A MIGRAÇÃO
A cidade de Blumenau,
na época, vivia sua nona década desde a fundação. Situada no Vale do Itajaí,
Estado de Santa Catarina, fora fundada por um alemão chamado Hermann Bruno Otto
Blumenau e colonizada, principalmente, por alemães, se considerarmos seu núcleo
inicial. Pelo resto do Vale, diversas outras etnias tinham se estabelecido,
enfatizando-se a presença de italianos
que tinham chegado a partir de 1875. No espaço que hoje (2004) é o
município de Blumenau, no entanto, a presença alemã era predominante. Voltando a Giralda Seyferth:[6]
“(...) As críticas
sobre o modo de colonizar o Sul (...) não resultaram em práticas outras: as
colônias continuaram recebendo imigrantes europeus e seus descendentes, e os
brasileiros em geral continuaram excluídos.
Até a década de 1940,
algumas questões configuraram-se mais diretamente vinculadas ao debate sobre a
identidade nacional brasileira e ao problema da imigração, e serão brevemente
analisadas neste trabalho:
(...)
c) A questão étnica
suscitada pela emergência, ainda no final do período imperial, das etnicidades
construídas a partir da experiência compartilhada do processo imigratório.
Nesse contexto, a etnia paradigmática da exclusão é a alemã, considerada a mais
irredutível ao caldeamento e à assimilação. (...).” [7]
Giralda Seyferth como
que dá a “chave” para os acontecimentos que Gilda vai contar a seguir. Para
situar melhor a época, é necessário que se olhe o governo de Getúlio Vargas não
apenas como auxiliar valioso na implantação da industrialização brasileira, mas
também no autor de um programa diferente do até então seguido para a formação
de uma “raça” brasileira. Se até seu governo o que se discutia na academia e
entre muitos cientistas era o “branqueamento” do povo, Vargas vai inverter o
processo, desconsiderando o eurocentrismo então vigente para criar um outro
personagem que deveria nortear a vida do Brasil de então adiante. O fato é
analisado da seguinte forma por Seth
Garfield[8]:
“Como parte de seu
projeto multifacetado de construção de um Brasil novo – mais independente
economicamente, mais integrado politicamente e socialmente mais unificado,
Vargas voltou-se para o valor simbólico dos aborígenes. (...) Os índios eram
defendidos por Vargas por conterem as verdadeiras raízes da brasilidade.
(...)
Ao difamar o europeu e
consagrar o indígena, os ideólogos e intelectuais da Era Vargas inverteram ou
subverteram a concepção eurocêntrica da história da cultura e do destino
nacional, vigente na elite brasileira. A essência da brasilidade havia sido
redefinida por membros da elite e da intelligentsia: ela não atravessou mais o
Atlântico, mas brotou do solo da nação, da sua fauna, flora e dos seus
primeiros habitantes.”
Se Vargas tinha um
novo projeto de Brasil e começava a aplicá-lo a nível nacional, tal realidade
não chegava a interferir com o que acontecia na antiga colônia Blumenau, onde
os alemães e seus descendentes continuavam sendo a etnia “mais irredutível ao
caldeamento e à assimilação”.[9] Há que se lembrar da nota de rodapé nº 1, onde
convencionou-se que a palavra “alemão” designaria tanto os habitantes dos
antigos estados que iriam formar a Alemanha em 1871 quanto seus descendentes.
Um novo fenômeno vai acontecer em 1890, quando se cria, a partir da Alemanha, a
doutrina do pan-germanismo, e o conseqüente “deutchstum”, o que poderíamos
traduzir como “germanismo”, mas que não será discutido neste espaço.
Continuar-se-á a usar a palavra “alemão” quando necessário se fizer referir-se
aos habitantes de língua alemã que viviam em Blumenau.
Gilda, brasileira
branca de origem européia, vê-se então entre outra gente branca, de origem
européia, que não está interessada no projeto nacionalista de Vargas, e que vê
em Gilda um ser inferior, uma “cabocla”.
A definição de caboclo é a de mestiço entre o branco e o índio, mas na
cidade de Blumenau tal palavra tem outra conotação: para o “alemão”, “caboclo”
é quem não é alemão nem de “origem”[10] alemã. Nessa altura, é muito grande o
número de filhos, netos e outros descendentes de alemães imigrantes já nascidos
no Brasil, mas a comunidade continua a se sentir “alemã”, mesmo já sendo
brasileira de diversas gerações. Ela “cabocliza” as etnias que não falam
alemão, principalmente as pessoas de etnia lusa, e que ainda por cima são
católicas, já que é muito grande o número de protestantes luteranos que vivem
na cidade de Blumenau de então e de agora. É como cabocla que Gilda é recebida
na nova comunidade, pois detém três graves defeitos: tem sobrenome luso, á
católica e não fala a língua alemã. As discriminações que vai sofrer por conta
desse acaboclamento resultante da migração pela qual passa são muito grandes em
quase todos os ambientes: no emprego, conseguido por ser “bem branca”, na
família do rapaz com quem vai namorar a seguir, por ser etnicamente diferente,
etc. São quase infinitas as queixas e considerações que Gilda tem sobre as
segregações e discriminações que vai sofrer logo na sua chegada e ao longo de
algumas décadas adiante. Embora Jeffrey Lesser vá dizer que “A ‘brancura’
continuou como um requisito importante para a inclusão na ‘raça’ brasileira,
mas o que significava ser ‘branco’ mudou de forma marcante entre 1850 e 1950”
[11], o grupo étnico alemão, ao considerar “caboclos” aos demais grupos
étnicos, reserva para si tal “brancura”. Giralda Seyfert de novo vai tomar da
palavra[12]:
“Os grupos imigrados
construíram suas identidades étnicas (...) baseados na percepção das diferenças
em relação à sociedade brasileira. (...) A retórica etnocêntrica que acompanhou
a elaboração das identidades estabeleceu o caboclo como o outro, o oposto ao
imigrante europeu. – categoria usada como sinônimo de brasileiro. Esse sistema
categórico construído por oposição envolve, principalmente, critérios raciais e
formulações subjetivas acerca do caráter e da mentalidade – em que o caboclo
aparece como indivíduo racialmente inferior, e o epípeto de “preguiçoso” é o
menos carregado de intenções pejorativas. (...) Na representação do pioneiro, a
categoria colono (trazida do jargão oficial) identifica os imigrantes europeus
e seus descendentes, e a colonização é definida como um processo civilizatório
instaurado na selva brasileira. Nela, certamente o caboclo brasileiro ocupa a
posição de bárbaro diante de civilizados!”
A intenção deste texto
é mostrar a história da personagem Gilda como migrante, e assim ficará de fora
toda uma discussão que poderia ser feita aqui sobre etnicidade, pertencimento,
etc., que caracterizaria ainda melhor a sociedade “alemã”, ou “de colonos”,
como poderemos chamá-la daqui para a frente, em contraposição à cultura,
língua, religião e demais costumes da cultura de onde Gilda provinha.
Taxada antecipadamente
como “preguiçosa” e outros adjetivos ainda mais contundentes, Gilda adentra ao
novo ambiente disposta a se fazer respeitar nele. Segundo ela, aprendeu que
“quem fica quieto acaba vencendo”, e muito deve ter se calado para chegar hoje
à posição de respeito que ocupa na mesma sociedade para onde migrou faz 70
anos, e que por antecipação já a excluía. Ela conta das grandes barreiras
enfrentadas quando começou um namoro com rapaz “colono”, “de origem”, “alemão”
(quando, na realidade, de alemão ele só tinha um avô). Ela não era “de origem”,
como se a única origem válida para uma pessoa fosse a alemã. Origem lusa não era “origem”, bem como muitas
outras. Assim, sem “origem”, Gilda vai
enfrentado passo a passo cada rejeição que sofre na família do noivo (bem como
nos outros ambientes aonde vive, como no trabalho, por exemplo), e acaba se
casando com o mesmo. “Mantinha a casa sempre impecavelmente limpa e arrumada,
para que não pudessem falar” – lembra ela. “Jamais deixava qualquer líquido
escorrer pela beirada do fogão (os antigos fogões de tijolos), para que nunca
alguém pudesse chegar e dizer que o meu marido se casara com uma cabocla que
não era limpa.” É possível se imaginar a
constante tensão em que vivia Gilda, continuamente sob pressão, constantemente
tendo de provar ser ela tão boa ou melhor que os “alemães”, para, de alguma
forma, diminuir a rejeição onde vivia. Ao mesmo tempo, tem um bom
relacionamento com o marido “de origem”.
“O meu marido se casou
comigo para valer, para sempre. Era alguém que gostava realmente de mim.”
Portanto, a exclusão no público não vai interferir no privado, e ela conta com
orgulho como, aos poucos, a partir do casamento, o jovem marido vai passando a
gostar sempre mais da sua comida do que da comida da mãe dele. É como uma
redenção – é a aceitação dos seus costumes. Até hoje ela critica muito certos
costumes alemães: “O feijão de vara, a cenoura, etc., eu refogava numa panela e
depois os ensopava sem jogar o caldo do próprio legume fora. Os alemães
cozinhavam até ficar mole, jogavam toda a água fora e depois comiam o legume
com vinagre. Jogavam fora a melhor parte da comida, a parte onde estavam as
vitaminas, as coisas boas. Eu era cabocla, mas sabia melhor que eles o que era
bom para a saúde.”
Sua redenção parece
ter sido no dia em que um cunhado esteve a visitá-los, e depois comentou com
seu marido: “A tua mulher é limpa mesmo! Não é como a mulher de Fulano (uma
“alemã”) que deixa o café escorrendo pela beirada do fogão” – referindo-se à
forma como ela mantinha o fogão e o resto da casa. Quase setenta anos depois,
ela lembra muito bem daquele momento.
Quando vieram as
crianças, seu cuidado redobrou. Tinham que estar sempre muito limpas, muito bem
cuidadas, de um jeito que não permitisse que qualquer parente “alemão” pudesse
fazer qualquer crítica. A tensão continuava , e ela sabe como, nas festas da
família, suas cunhadas mostravam suas crianças para os estranhos e diziam:
“Veja que bonitinha! Tadinha!” – e ela sabia que o “tadinha” era um adjetivo
que significava que se tratava de uma criança mestiça, portanto, de qualidade
inferior, filha de uma cabocla.
Naquelas primeiras
décadas de tensão ela adaptou-se o mais que pode ao grupo no qual penetrara,
tentando vencer suas diferenças de migrante. As cercas de estaquetes da sua
casa eram tão simétricas e bem feitas quanto as de qualquer outro “alemão”; seu
jardim era composto por retilíneos canteiros de rosas e violetas, e ela
plantava gérberas em filas tão “prussianas” quanto qualquer das suas cunhadas.
Além da casa, do jardim e dos filhos, ela muito trabalhou para ajudar o marido,
pequeno comerciante, e assim, aos poucos, acabou conquistando um respeito que
não tinha no começo, diante da família do marido e da sociedade em geral. Deve
ter demorado, no mínimo, umas três décadas. Ela viu todo o desenrolar da
Segunda Guerra Mundial em Blumenau, viu o processo de nacionalização que o
governo Vargas promoveu, viu a gente da qual agora passara a fazer parte ser
obrigada a falar a sua língua (ela conta que inúmeras vezes foi censurada por
falar palavras do português que os “alemães”, no seu parco entendimento de tal
língua, lhe censuravam pelo uso), viu as muitas outras migrações para a cidade
de Blumenau. O “colono” foi, muito lentamente, absorvendo as realidades
brasileiras, sendo que, nas palavras dela, “Alguns não têm jeito. Continuam
sendo “de origem” e não se interessam por mais nada.”
Gilda criou bem sua
família, cuidou do seu marido até seu falecimento prematuro, aos 62anos,
portanto, há mais de vinte anos, teve tempo, mais de uma vez, já na sua viuvez,
de ir cuidar de cunhadas que estavam doentes, em cidades distantes, conquistando
cada vez maior respeito na sociedade e na família. Ela está viva o tempo
suficiente para ter visto diversas coisas: sua cultura primeira, sua migração e
uma cultura nova, à qual se adaptou com firmeza, o processo de nacionalização,
o recriar da cultura do pessoal “de origem”, quando Blumenau criou a
Oktoberfest, em 1984. Com a criação da Oktoberfest, ela demonstrou muita
emoção. Era uma festa que a fazia lembrar de tempos antigos, quando, mesmo
cabocla a ser humilhada a todo instante, viveu os tempos coloridos da
juventude, enfrentou uma família ferrenhamente “de origem”, casou-se.
2.3 HOJE
Hoje Gilda vive um
refluxo da sua cultura original. Ela é economicamente independente; seus filhos
tiveram sucesso econômico e profissional na vida e ela recebe considerações de
pessoas e grupos estranhos por isto, além de ser considerada por sua própria
personalidade que enfrentou as adversidades e lutou contra costumes
estabelecidos, saindo vencedora de uma luta que durou quase toda a sua vida. É
bastante evidente o quanto lhe importa o fato de ter conquistado o respeito da
família do marido, que hoje lhe tem grande consideração, como é evidente a
surpresa que tem quando vê autores portugueses famosos internacionalmente, como
Eça de Queiroz ou o prêmio Nobel de Literatura José Saramago, usando palavras
que lhe foram censuradas na juventude.
Gilda, hoje, não deve
explicações de sua vida a ninguém, e então a sua cultura original pode refluir
sem críticas, e basta-se chegar ao portão do jardim da sua casa para entender
isto. Acabaram-se as gérberas em filas prussianas; acabaram-se as fileiras
retilíneas de roseiras. Seu jardim é, hoje, exatamente um jardim português, com
todas as plantas e flores misturadas, bem como se pode ver na maioria dos
jardins daquele país ibérico. Sua casa é cercada por um muro retilíneo como os
muros “alemães” que foram falados na
introdução deste texto, mas nada a impediria de fazer novas cercas como as da
sua cultura lusa. Como migrante, algumas coisas ela acabou absorvendo da nova cultura,
e como podemos ver num texto traduzido por Eunice Nodari[13]: “Grupos étnicos
em cenários modernos estão constantemente se recriando e a etnicidade está
sendo reinventada continuamente como resposta às realidades inconstantes tanto
dentro do grupo como na sociedade anfitriã.”
Assim, com a liberdade
do respeito adquirido e da idade, Gilda hoje pode viver a sua real
personalidade, que vamos tentar explicar qual seja: já não é mais a personalidade da mocinha
“cabocla” que um dia avançou para dentro do terreno “inimigo”, nem a mulher “de
origem” com a qual quis se parecer quando vivia sua luta pela conquista de
respeito e de um lugar ao sol. Hoje ela pode se dar ao luxo de ter seu jardim
luso e seu muro mais ou menos prussiano sem ter que explicar nada a ninguém.
CONCLUSÃO
No estudo de caso
efetuado ficou bastante claro como uma cultura pode ser “absorvida” por outra,
pelo menos durante algum tempo. São muitíssimos os casos de migrações pelo
mundo, e há de haver tantos outros casos de rejeição/absorção/interpenetração/
e/ou outras possibilidades a cada vez que uma migração acontece. Sentimentos
nos quais sequer se pensa, às vezes estão embutidos nos machucados e dores que
as mudanças acabam provocando em grande parte dos migrantes, sentimentos que os
ajudam a sobreviver no novo ambiente, onde, como no caso estudado, até a língua
original era negada, primeiro num todo, depois, em parte. Também se pode
observar que o migrante, de alguma forma, conserva sua cultura original, e,
havendo a possibilidade, ela ressurge, mesmo que já ressurja mesclada com
coisas da cultura adotiva. Novas sociedades se formam a partir do encontro de
etnias diferentes, como é o caso de Blumenau, que já não é “colona” e nem
“cabocla”, mas uma nova cidade onde ainda continuam se mesclando as muitas
etnias que para ela migraram e continuam migrando.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONZEN; Kathleen
Nehls; GERBER, David A.; MORAWSKA, Eva; POZZETTA, George E.; VECOLI, Rudolph J.
Fórum. The Invention of Ethnicity: A perspective from the U.S.A. In: Journal of
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GARFIELD, Seth. As
raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na Era
Vargas. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 39, 2000, p.13-36
LESSER, Jeffrey. O
Hífen Oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a
luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001, p. 17-35
SEYFERTT, Giralda.
Identidade Nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão
imigratória no Brasil. In: ZARUR, George de Cerqueira Leite. Região e Nação na
Aqmérica Latina. Brasília: Editora da UnB: São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado, 2000, p. 81-109
[1] Deixo
convencionado que sempre que eu usar a palavra “alemão” ou “descendente de
alemão”, estarei me referindo aos descendentes dos moradores dos antigos
Estados que, em 1871, vão dar origem ao país que hoje conhecemos como Alemanha.
Quando quiser me referir a algum alemão nato, darei a devida informação. (Nota
da autora)
[2] Como quase tudo o
mais que recebe a influência deste mundo quase globalizado, as próprias cercas
irregulares de Armação do Itapocoroy praticamente desapareceram. (Nota da
autora)
[3] SEYFERTH, Giralda.
Identidade nacional, diferenças regionais, integração étnica e a questão
imigratória no Brasil. In: Região e nação na América Latina. Org. ZARUR, George
Cerqueira Leite. Brasília: UnB, s.d.
[4] Padre Jacob
Hudleston Slatter (Nota da autora)
[5] A legislação que
vai dificultar a vida do agricultor consiste numa série de leis complementares
principalmente à Constituição de 1934, além de outros atos, como Decretos. O
Professor Mestre em Educação e Geógrafo, Aldo Moretto Sobrinho, realizou a
pesquisa sobre tal legislação, tendo usado como fonte, principalmente, boletins
que eram emitidos para os Contabilistas da época. Esta informação foi confirmada
com o referido professor, verbalmente, em julho de 2004.
[6] SEYFERTH, Giralda.
Op.cit. p. 88
[7] Grifo da autora.
[8] GARFIELD, Seth. As
raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era
Vargas. In: Brasil, Brasis. Revista Brasileira de História nº 39, v. 20. São
Paulo: ANPUH, 2000.
[9] SEYFERTH, Giralda.
Op. Cit., p. 88
[10] Até hoje, ano de
2004, Gilda usa a expressão “de origem” para designar os alemães e seus
descendentes, como se ser “de origem” significasse ser alguém “melhor” na
escala social. (Nota da autora)
[11] LESSER, Jeffrey.
O hífen oculto. In: A negociação da identidade nacional: imigrantes, minoria e
a luta pela etnicidade no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p. 21
[12] SEYFERTH,
Giralda, op. Cit. P. 97-98
[13] CONZEN, Kathleen
Nehls et alii. The invencion of Ethnkcity: A perspective from U.S.A. In:
Journal of American History, Fall 1992. Traduzido por Eunice Nodari.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado
em 5 de maio de 2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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