Hora da verdade
O
ensaísta francês Stendhal (e para quem não se lembra, ou não sabe, este era o
pseudônimo de Marie Henri Beyle, nascido em Grenoble, autor de um dos grandes
clássicos da literatura mundial, “O Vermelho e o Negro”), constatou que muitas
pessoas – eu diria a maioria – se deixam enterrar vivas, por jamais dizerem a
que vieram ao mundo. Não trabalham e, quando o fazem, se contentam com tarefas
rotineiras, mecânicas, automáticas e nada criativas, como as executadas pelo célebre
Carlitos no filme “Tempos Modernos”. Ou não estudam e, quando o fazem, não se
empenham a fundo para, de fato, aprender. Limitam-se a ficar de olho somente no
diploma, como se este fosse a sua redenção. Enfim, não fazem nada que preste
aos outros, nem às próprias famílias. Vegetam, vida afora, como se fossem meros
passageiros da espaçonave Terra. Não são! Ninguém é, pois esta não os comporta.
Todos, indistintamente, fazendo ou não nossa parte, somos tripulantes dessa
nave frágil e misteriosa, que singra o espaço com destino que ignoramos qual
seja.
O mais estranho de tudo é que muitas
dessas pessoas são privilegiadas pela natureza, dotadas de rara inteligência,
ou de força descomunal, ou de energia fora do comum, ou de talentos que poucos têm, mas parecem
sequer se dar conta disso. Ou, quando se dão, desperdiçam esses dotes em
atividades inúteis, vazias, sem sentido. Alguns, por exemplo, aplicam sua
excepcional inteligência na tarefa inócua da acumulação de bens. Passam por
cima de tudo e de todos na ânsia de “ter”. Mas não o suficiente para a
sobrevivência ou a manutenção da família, o que, até, seria admissível. De
forma obsessiva, doentia, avarenta e mesquinha, ajuntam mais, muito mais do que
o necessário para viver e a própria capacidade de gastar.
Há os que, na hora da verdade, diante
da iminência da morte, se dão conta da tolice que cometeram. Só que, na maioria
dos casos, essa descoberta se revela tardia. Descobrem que desperdiçaram a vida
por nada. Estes sempre estiveram enterrados vivos e nunca perceberam. Muitos,
contudo, nem nesse momento extremo admitem, ou concluem, que cometeram esse
fatal erro de avaliação.
Há, por outro lado, os que usam a força
física com que foram dotados (e que um dia também decresce até se extinguir),
ou a beleza (ilusória e que tem tempo contado) ou a energia (que igualmente se
esgota) para oprimir, humilhar, agredir, dominar e se sobrepor aos que foram
menos dotados pela natureza e que requerem sua ajuda e proteção e não sua
arrogância e prepotência. Em geral, essas pessoas, ao ficarem velhas (quando
ficam), são as que mais sofrem. Afinal, só lamenta uma grande perda quem teve o
que perder.
Há muitas e muitas outras situações em
que os envolvidos se enterram vivos. Enterram corações. Enterram cérebros.
Enterram emoções. Enterram inteligências. Enterram talentos. Enterram todo o
seu potencial e não conseguem, com sua atitude, mais do que rancores, ou
ressentimentos, ou a ira alheia ou, quando muito, a piedade dos que os cercam.
São perdedores, embora tivessem tudo para vencer.
Os vencedores, por seu turno, às vezes
não são tão inteligentes, ou tão fortes, ou tão belos, ou tão enérgicos. São
dotados, todavia, entre outras virtudes, de uma característica insuperável: o
entusiasmo. São os que muitas vezes tardam a estabelecer objetivos, mas que,
quando o fazem, nomeiam aqueles que sejam compatíveis com a sua capacidade e,
sobretudo, factíveis. Além disso não se limitam a meramente querer que eles se
concretizem: se empenham, a fundo, com cérebro, corpo e alma, na sua busca. E esbanjam,
sobretudo, três palavrinhas, muito curtas, porém fundamentais: sim, não e oba.
A primeira, é de aceitação de tudo o
que seja positivo, construtivo e sadio. A segunda, é de recusa dos maus
sentimentos, más emoções e maus comportamentos, próprios e/ou alheios. E,
finalmente, a terceira, utilizam para exprimir o encantamento, a alegria e o
entusiasmo pelas vitórias conquistadas, por menores que sejam.
Os vencedores também experimentam
inúmeros fracassos no meio caminho. Estão muito longe da perfeição e têm plena
consciência disso. Mas fazem das próprias vulnerabilidades, fraquezas e
deficiências armas poderosas para o sucesso. Honoré de Balzac, por exemplo, era
uma pessoa extremamente perdulária. Vivia atolado em dívidas e, não raro, os
credores entravam em sua casa e retiravam todos os seus móveis, em troca de
suas dívidas. Por causa desse fator, no entanto, premido pelas circunstâncias,
colocou o máximo de empenho no que sabia fazer de melhor: escrever. Endividado
até a alma, escreveu, escreveu e escreveu furiosamente, com vigor e entusiasmo.
E nos legou, entre tantas obras, os 35 volumes da “Comédia Humana”.
Fedor Dostoievski, por seu turno, era
um jogador inveterado. Não podia ter dinheiro nas mãos que logo se dirigia a
Montecarlo e lá deixava tudo o que havia ganhado com imenso sacrifício. Mas
nunca usou sua desgraça e nem suas desventuras e defeitos pessoais como
desculpas para não fazer nada. Recusou-se a se deixar enterrar vivo (mesmo
quando foi enviado para um campo de trabalhos forçados na Sibéria). Com isso,
legou à humanidade obras marcantes como “Crime e Castigo”, “Irmãos Karamazov” e
“Recordação da Casa dos Mortos”, entre outras. Estes, e tantos outros, souberam
vencer seus vícios, fraquezas e, principalmente, o desânimo (e a conseqüente tentação
da apatia), com a poderosa, quase invencível arma do entusiasmo. E se eles
puderam...
Boa leitura!
O Editor.
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Deveríamos nascer a cada dia junto com o sol, e com entusiasmo inexorável. Quero e faço assim, mas nem sempre.
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