Caduco
* Por
Gustavo do Carmo
De repente as pessoas
passaram a me ver com pena. Entre eles
meus filhos e meus netos mais velhos. Os meus netos mais novos e os meus
bisnetos, tão imaturos, riem de mim pelas costas. Na minha frente, apenas
sorriem, mas percebo que é um sorriso irônico.
De repente meus filhos
começaram a me desmentir. Aliás, só tenho um filho ainda vivo. Os outros dois
já morreram. Também me toquei que os meus irmãos, com os quais ainda converso
muito, já morreram. Enfim, me toquei que eu estou falando sozinho.
Outro dia o meu neto
do meio, aspirante a escritor, quase perdeu a paciência comigo quando lhe
alertei que a ditadura do Estado Novo iria censurar o conto que ele escreveu.
—Vovô. Não estamos
mais no Estado Novo. Estamos na democracia.
— Ah, é. Agora que eu
me lembrei. Estamos no governo JK, né?
—Não vô. O governo JK
acabou há cinqüenta anos. Quem governa agora é o PT.
Eu ouvi PC e gelei. Os
comunistas tomaram o poder, mesmo! Quase ensaiei um escândalo para sair do
Brasil. Mas nem forças pra gritar eu tenho mais. Meu neto me corrigiu. Disse em
voz mais elevada que era pê-tê, de tatu. Partido dos Trabalhadores. Se é que de
trabalhador, esse partido só tem o nome, eu comentei.
Meu neto concordou um
pouco comigo. Está vendo? Não estou tão
caduco assim. Mas depois ele me explicou passo a passo: que o PT de hoje está
na direita. Que hoje vivemos numa democracia (bem falsa, aliás), que já
derrubamos um presidente corrupto, já elegemos duas vezes o mesmo presidente no
primeiro turno. Aliás, o que é primeiro turno? Na minha época isso queria dizer
turno de horário. Meu neto me explicou que candidato que não obtém cinqüenta
por cento mais um voto tem que disputar o segundo turno com o segundo mais
votado no tal primeiro turno.
Meu neto me deu uma
folga. Ou se deu uma folga? Pedi para a minha nora me levar na Galeria
Cruzeiro. Queria ir num restaurante no terraço de lá. Ela, que é mineira,
desconhece esse lugar aqui no Rio e quase me levou para Copacabana. Se
confundiu com a Galeria Menescal. Meu filho, seu cunhado (ela é viúva de um
filho falecido) a socorreu dizendo que a Galeria Cruzeiro não existe mais há
mais de cinqüenta anos. Porra, tudo acabou há mais de cinqüenta anos nesse
país? Será que eu fiquei em coma e estou acordando no século XXI? Meu filho prometeu me levar na Galeria
Menescal. Menos mal.
Minha família, que no
início desse relato me olhava com pena, agora me olha com preocupação.
Preocupação com o meu estado de saúde. Eu me sinto bem. Mas as besteiras que eu
tenho falado aqui estão lhes preocupando. Não são só minhas besteiras, não.
Outro dia saí sozinho e me perdi. Levaram doze horas para me encontrar.
Eu fui dar uma volta
pelo bairro e, ao invés de entrar no prédio, fiquei procurando o casarão onde
eu morava com os meus pais. Claro que o casarão foi demolido e eu me
desesperei. E ainda paguei mico perguntando por ele para os jovens moradores da
rua. Quando fui localizado pelo meu neto mais velho, eu ainda pedi para visitar
o Cardoso. Só não sabia que o meu amigo de infância havia morrido há dez anos.
Agora me bateu uma
preocupação. Meu neto do meio estava escrevendo um conto e eu estava com medo
dele ser perseguido pelo Estado Novo. Realmente a ditadura do Vargas acabou.
Estamos agora é no regime militar. Preciso avisar a ele. Ah, não! Me lembrei
que estamos no governo Sarney, que a ditadura já acabou. Ou é o governo
Fernando Henrique? Ih, será que foi aquele sapo barbudo do Lula que foi eleito?
Se ele assumir, vai transformar o Brasil em um país de esquerda.
Apareceu o meu bisneto
mais velho querendo conversar comigo. Ele tem uns nove anos de idade.
—Oi, vô.
— Oi, meu neto
querido. Toma: mil cruzeiros para você comprar uma bala. Dei-lhe uma nota com
as duas esfinges do Barão do Rio Branco.
— Vô, acorda! Esse
dinheiro não vale mais nada.
— Como mil cruzeiros
não valem mais nada??? Mil cruzeiros dá pra comprar até um chocolate importado.
— Vô, nossa moeda
agora é o Real. Desde que eu nasci já era assim.
Agora fui eu que
fiquei com pena do meu neto. Quer dizer, do meu bisneto. Ele acabou ficando com
a nota de mil cruzeiros. Ele é um menino esperto e vai correr pra mostrar para
os amiguinhos mais velhos as notas que seu avô usava. Mas se afastou de mim
assustado.
Quanto a mim, meu
filho me levou para fazer exame depois daquele susto que dei neles, mas não
estou com Alzheimer. Estou ficando caduco mesmo. Agora, me dá licença que eu
vou lá na banca comprar a última edição da revista O Cruzeiro e depois fazer as
malas para viajar pra Nova York e visitar o World Trade Center.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance
“Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea
“Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess -
http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu blog, “Tudo cultural” -
www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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