Mestre ou professor?
* Por
Rubem Costa
Na manifestação do
sentir, na rebentação das emoções ou no vôo místico da poesia, a palavra tem
peso e medida. Irrupção mágica de sentimentos que transbordam da essência do
ser, o vocábulo, prefigurando imagens, tracejando idéias, traz em si mesmo uma
força significativa e exclusiva que lhe dá dimensão para definir e move a
balança para decidir. Mas, essa manifestação expressiva, em que fala o ser em
sua essência, implica numa avaliação de representação única que os dicionários
não são capazes de traduzir, porque, na frieza do conceito, se perdem na busca
da sinonímia e liberação de parecenças, às vezes aparentemente iguais, mas
nunca perfeitas. Nela, na configuração verbal do termo, avultam contornos que a
tornam peculiar e indivisível. É essa essencialidade que faz a magia da
significação e erige o mistério que preside o vocábulo contabilizado no segredo
da linguagem. Um encantamento guardado na combinação enigmática de sons e
símbolos que reproduzem figuras e visões, risos e lágrimas, rogos e maldições
numa extensão de sílabas e frases que, acomodadas no espaço e no tempo, se
separam e se distinguem, formando os idiomas; línguas múltiplas, que se
subdividindo, transbordam em dialetos regionais e gírias coletivas. Marcam a
grandeza pátria do homem e a individualidade do ser na sua contingência grupal.
É o alfa e o ômega em que se aninha o pensamento.
Do Egito dos Faraós
(onde tudo demandava iniciação e cada mistério era representado por um deus) é
que se irradiou o deslumbramento diante da origem inexplicável do vocábulo.
Enigma que perturbava a mente dos sábios que, nele vendo o indecifrável, lhe
consagraram uma divindade especial a que deram o nome de palavra. Dizem ainda
que foi daí, dessa forma de adoração, que tiraram os gregos a doutrina do
logos, concepção que levou São João a abrir o seu evangelho com o célebre
intróito: — “no princípio era o verbo”... O mesmo verbo que a Bíblia revela,
aflorado no Gênesis quando, depois de ser criado á imagem e semelhança de Deus,
o homem, marcado pela desobediência, recebe a sua primeira e fundamental lição:
— “do suor de teu rosto, comerás o pão...” Momento magistral em que Jeová se
revela como o primeiro e máximo mestre do universo. Mestre, termo que com
raízes no grego vem do latim — magister — aquele que compõe, que guia, que
rege. É que naquele instante, o Mestre ensinava o ser a olhar para si mesmo,
para sua nudez e existência, através da janela da vida. Era o homem sendo
integrado à forma de agir e à responsabilidade de decidir. Interação da mente
ao gesto. É sem dúvida por isso que nos Evangelhos, todos que se aproximam de
Jesus o chamam de mestre e não de professor. Porque não há como confundir.
Professor é aquele que, levado pela presunção, olha o ser pela janela da
vaidade, enquanto o Mestre, tomado de afeto, olha o ser pela janela da vida.
Assim, nas línguas em que a Bíblia é traduzida, a semântica não se mistura. Em
inglês, por exemplo, no texto bíblico sempre aparece — master — e não teacher.
Lucas, o evangelista, nos dá o modelo marcante de respeito ao gesto, quando
conta o episódio — aqui transcrito em síntese — do moço rico que,
aproximando-se de Jesus, lhe diz: — Bom Mestre, que farei para conseguir a vida
eterna? E Cristo lhe retruca: “Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que
é Deus. Se queres porem, entrar na vida eterna, guarda os mandamentos.”
Disse-lhe o mancebo: “A todos tenho guardado desde a minha mocidade; que me
falta ainda?” Disse-lhe o Mestre: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o
que tens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu; só depois, vem e
segue-me”. O magistério salutar calou fundo no apego aos bens da terra. O
mancebo, pleno de usura, ouvindo a recomendação, não querendo despojar-se de
suas propriedades, retirou-se aborrecido, de consciência machucada, sem olhar
para trás. Era o homem aprendendo a mais difícil das lições: ser juiz de si
mesmo.
Todavia, a antítese do
bom ensino, a prática do anti-magistério não é difícil encontrar em nossas
escolas, como bem evidencia a historinha produzida pelo Pedro Bloch que, na
extinta revista Manchete, mantinha uma seção denominada Criança tem Cada Uma!.
Uma aluna pequenina estava em classe com um livro aberto, quando a professora,
vendo que se tratava da história de Jonas, disse-lhe que era fisicamente impossível
uma baleia engolir um homem, porque, apesar de ser um mamífero muito grande, a
sua garganta é bem pequena. A menina, entretanto, encantada com a lenda,
insistiu em afirmar que era verdade, pois estava escrito no livro que Jonas foi
engolido pela baleia. Sem compreender o poder de fantasia da criança, irritada
com a teimosia, e esquecida de seu papel de orientadora, a professora
asperamente advertiu a menina para deixar de ser teimosa, acrescentando: “Uma
baleia não tem condição alguma para engolir um homem. E ponto final, não dou
mais explicações.” A garotinha, inconformada e chorosa, então lhe disse:
“Quando eu morrer e for ao céu, vou perguntar a Jonas.” A professora
esbravejando, ainda mais severa, lhe pergunta: “E o que vai acontecer se Jonas
tiver ido para o inferno?” Candidamente, a menina respondeu: “Então é a senhora
que vai perguntar.”
PS. 70 anos de
formatura. Amanhã, 28, é dia de reencontro. Conjugação de sonhos e refluir de
esperanças. Volta ao tempo que se evolou num mundo que já não é. Relembranças
de momentos, segmentos de horas. Instantes que marcam no painel da existência a
saudade dos que tombaram, deixando com os que ficaram a saga de uma geração que
cultuou a escola e acreditou na vocação do homem em busca de sua dignidade.
Geração que se extingue no rebojo de uma era desalentada, mas que ainda traz
guardado dentro de si o escrínio da respeitabilidade e acredita que a essência
da alma é espelho da imagem de Deus. Uma visão do ser no transcorrer das horas
inquietas. Há sete décadas, éramos setenta a receber na Escola Normal
"Carlos Gomes" o título de mestre. O diploma, como papel, pouco
importa. O que vale é a certeza de que, na corrida de revezamento, na
transferência da tarefa, passamos o bastão de educador intacto, puro como o
recebemos. Depois disso, ignoro ou desejo ignorar. O que sei e conservo, é a
certeza de que, quando o último — ou a última — dos setenta se for, deixará
esculpido na lápide do encantamento um epitáfio que servirá para todos:
“Foi mestre. Educou.
Edificou gerações.”
*
Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.
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