Encastelados sem castelo
* Por
Mara Narciso
Estou instalada aqui
nesse meu medíocre mundinho de aparente segurança. Escrever é um risco. Os
censores costumam aparecer com o lápis vermelho. Sobre minha cabeça um teto, há
um chão sob meus pés. Ele está seco, assim, não temos inundação, entra luz
natural pelas frestas, o ar está respirável, tenho energia elétrica, água nas
torneiras, dispensa com provisões para alguns dias, posso sair para comer ou
pedir comida. Tenho telefone, internet e TV a cabo. Estou vendo, andando e,
aparentemente em boas condições mentais. Tenho um filho por companhia, não
acumulei, mas não devo, exceto o Imposto de Renda que já está sendo calculado.
Ontem à noite saí com amigas. Fomos a um barzinho simples, comer espetinhos de
carne e de coração e beber uma bebidinha. Em janeiro viajamos juntas. A noite
estava fresca e uma lua quase cheia estava enfeitando e nos chamando a falar de
Deus. Alguns me perguntam por que não falo Dele.
Há 36 anos trabalho de
manhã e à tarde, por toda a semana. Depois das 18 h descanso, leio, escrevo,
visito, participo de reuniões. Uma rotina que massacraria a muitos desejosos de
uma existência emocionante. A minha vida, no momento, não emociona. De vez em
quando um evento, uma festa. Tenho sorte em ser amada pela minha família. A um
grito, logo aparece algum dos meus muito queridos tios. Meu maior tesouro:
minha credibilidade.
Uma vida comum não
deve servir ao comodismo, ao não olhar em volta, ao não pensar no coletivo.
Somos responsáveis pelo conjunto. O solo precisa ter saúde. A árvore que
plantamos não é nossa, é da comunidade. A água da nossa cisterna não nos
pertence. Apenas a cavamos. O lençol freático é dos que sobre ele vivem. Nem a
água da nossa torneira é apenas nossa. É preciso regrá-la para que dê para
todos. O ar que respiramos é da coletividade. Devemos mantê-lo com razoável
qualidade e deixar o ambiente habitável. Verbos indispensáveis: recuperar,
consertar, reutilizar, poupar, reduzir a produção de lixo. Cuidando do nosso
quintal, emporcalharemos menos o mundo. Já cometemos muitos erros, somos
responsáveis pelo esgotamento de bens não renováveis, pela sujeira e pelo
comportamento mesquinho reinantes.
É preciso ter memória
e reverenciar os mortos, mas também deixar alimentos para as gerações de
amanhã. E os seres vivos? Como os protegemos? O barulho que produzimos é
tolerável? Qual é o nosso direito de incomodar o próximo? Como nos comportamos
nas ruas? Jogamos lixo fora da lixeira, passamos pelos necessitados com
desprezo, vemos a violência e fingimos que não nos atinge? Protegemos os
fracos? Receio, cautela, sentido de preservação são indispensáveis, mas que, em
nome da aparente segurança não nos deixemos desumanizar de todo. Carros
blindados e casas/prédios bunkers são uma necessidade construída ano a ano pela
deterioração da nossa espécie. Massificamo-nos, e isso nos parece irreversível.
Vemos alguém ser
humilhado, ferido física ou psicologicamente e ignoramos o fato. É cômodo
pensar: ainda bem que não é comigo. Quando vemos alguém salvar um desconhecido,
nos surpreendemos, a ação vira manchete de jornal. Vídeos de gente que salva
gente ou animais tornam-se virais, são loucos a ser estudados. Afinal, o que
temos com isso? Queremos é escapar do infortúnio. Caso a fatalidade visite o
outro, foi má sorte. E se quase vemos o desastre, viramos o rosto.
Não podemos nos fazer
de surdos quando vizinhos brigam e a alteração de vozes se torna perigosa. Não
é possível ver/ouvir adultos maltratando crianças e animais. E a pior
imoralidade: o que fazer quando nos feriados prolongados um cão uiva pelos
dias, noites e madrugadas adentro, intermináveis lamentos durante todo o
período, mês após mês? Eu imploro para
que alguém o salve, pois ele sofre e sangra ao se arrebentar de dor, pedindo
socorro. Todo o quarteirão se contorce em agonia ao ouvir a penitência desse
cão infeliz. É preciso agir. Não agindo, somos vermes, isso se não ofendermos
aos que rastejam, os comparando conosco.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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