O portão do pasto do tio Júlio
* Por
Urda Alice Klueger
Lembro-me como se
fosse hoje, mesmo que já se tenham passado umas quatro décadas. Era o portão do
principal pasto do tio Júlio, porque o tio Júlio tinha diversos pastos, e suas
nédias e mansas vacas holandesas faziam rodízio neles, alimentando-se sempre de
grama nova e viçosa. O portão do pasto do tio Júlio era daqueles portões de
madeira encarunchada e arame farpado que quase todas as propriedades tinham
então, e era aberto sempre que se queria, por qualquer um, mesmo que fosse uma
criança. Ele só era fechado por uma corrente que engatava num prego, e eu e
meus primos podíamos abri-lo sem nenhuma dificuldade.
Lá no tio Júlio havia
oito primos, fora três “anjinhos” que dormiam no cemitério e para quem a gente
levava flores – mas os primos de idades mais próximas da minha eram o Jorge e o
Afonso, a Ruth e a Darcy. Desde muito pequenos eles ajudavam tio Júlio em
milhares de coisas no seu ofício de produtor de leite para o Hospital Santa
Isabel, de Blumenau: colocavam gramão e cana na máquina de cortar trato,
carregavam os balaios de trato para os cochos das mansas vacas holandesas,
tinham seus próprios banquinhos de ordenha e tiravam baldes de leite de cada
vaca, pois as do tio Júlio eram vacas premiadas, que produziam muitos litros de
leite a cada dia. Era necessário, então, depois da ordenha, levar as vacas para
o pasto daquela ocasião (elas freqüentavam um pasto de manhã e outro de tarde),
e a Darcy, e o Jorge, e os outros é que o faziam, e muitas vezes abriam o
portão mencionado, e acompanhavam mais de trinta vacas estrada abaixo, até o pasto
escolhido para aquele dia, indo buscá-las de noitinha para a nova ordenha,
abrindo e fechando o portão sem nenhuma dificuldade. No tempo em que eu era bem
pequena, tio Júlio passava naquele portão com sua carroça; mais tarde, já lá
pelos anos 60, entrava ali com seu carro. Em ocasiões em que havia um touro
brabo no pasto, o portão ficava fechado o tempo todo – em outras ocasiões,
quando as vacas já tinham saído para pastar alhures, o portão podia ficar
aberto, com o cavalo Baio sozinho lá no pasto, que o Baio era tão manso que não
fugia. E reafirmo o que já disse acima: o portão tinha tal simplicidade de
fechadura que qualquer criança pequena podia abri-lo ou fechá-lo.
Mas então o tempo
passou. Tia Fanny, e depois o tio Júlio, ambos acabaram viajando para outras
plagas, e seus herdeiros tiveram que decidir o que fazer com aquela barbaridade
de terra que tinha ficado. E ali no pasto principal do Tio Júlio cresceu um
imenso condomínio cheio de prédios modernos, com um portão de entrada
exatamente onde tinha sido o antigo portão do pasto. Meus primos moram lá,
hoje, cada um num espaçoso apartamento, e cada um levou consigo para a nova
morada algumas peças de mobiliário da antiga casa do Tio Júlio, e eu vou lá e
tenho vontade de chorar quando as vejo e lembro daqueles tempos que ficaram lá
tão longe. Meus primos tiveram o cuidado
de mandar imortalizar por famosa pintora as fotos daqueles tempos em que eu era
criança, e em que qualquer pequena mão infantil podia abrir o grande portão do
pasto, e nas paredes dos seus apartamentos aqueles quadros são como que um soco
no peito que o passado nos dá.
No Domingo passado eu
fui lá lhes fazer uma visita. Minha mãe, que foi junto, telefonou antes, para
confirmar estas coisas de bloco e andar, estas coisas que existem nos endereços
contemporâneos. E então, que aconteceu? Minhas primas disseram:
-Olha, vocês trazem o
celular e ligam lá do portão, que então a gente abre!
Santo Deus, há que se
ter um telefone celular, agora, para se entrar no portão do pasto do tio Júlio!
Levamos o celular, entramos – eu aproveitei para dar uma espiadinha no sistema
de interfone que havia lá no portão, e que era complicadíssimo, desses que se
criam para enganar qualquer ladrão, coisa de uso impossível para pessoas
comuns. Sem celular, a coisa fica bem difícil!
E pensar que era um
portão que qualquer mãozinha de criança abria!
Blumenau, 06 de
Fevereiro de 2003.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
Esses socos dados pelas imagens do passado são provas de que ficamos piores.
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