Instinto e Razão
* Por Pedro J.
Bondaczuk
O homem, embora tenha o privilégio de
ser o único ser vivo dotado de razão --- pelo menos no pedaço do universo que
conhecemos --- é um animal como outro qualquer. Luta pelo seu espaço, batalha
pelo alimento que o mantenha vivo, empenha-se pela obtenção do abrigo que o
proteja das variações climáticas e de outros perigos, duela (se preciso) pela
parceira que lhe garanta a perpetuação da espécie, etc., sem nenhuma
preocupação primária com os direitos do próximo.
É dotado pela natureza de um conjunto
de instintos que garantem a sua sobrevivência como indivíduo. O mais vem depois
(quando vem) de consolidada essa garantia. À medida em que vai se civilizando,
amplia o espaço do racional, em detrimento do instintivo. Isso não quer dizer
que esse mecanismo natural seja ruim ou inadequado. Pelo contrário. Sem ele, a
espécie humana certamente estaria extinta, como ocorreu com várias outras,
algumas das quais sequer deixaram vestígios.
Desde que seja compreendido e
direcionado pelo raciocínio, o instinto é útil, necessário e indispensável.
Torna-se ruim quando passa por cima da razão. Quando desencadeia as forças
cegas, primitivas, caóticas que existem latentes no coração humano. Quando o
homem retroage ao princípio e perde de vista as conquistas éticas e morais de
sucessivas gerações.
O instinto, puro e simples, despido da
razão, induz a comportamentos agressivos e egoístas. Quando uma sociedade é
baseada apenas nele, inexistem a solidariedade, a piedade e o sentimento do
coletivo. Ela corre o risco de extinção, mergulhada no caos e na violência. Nas
atuais, embora camuflado por um "verniz" civilizatório, sobrevive
forte e feroz. E, mais do que isso, em muitas prevalece, impedindo sua evolução
e a ameaçando de extinção.
O escritor E. L. Thorndike, no livro
"A natureza original do homem", observa: "Por instinto nós
tememos, não os transmissores da malária ou febre amarela, mas o trovão e o
escuro; não lamentamos os homens bem dotados que não recebem educação, mas a
chaga saniosa do mendigo; uma grande injustiça nos impressiona menos que um
pouco de sangue; sofremos mais com o olhar de desprezo dum garçom que não
recebe gorjeta do que com a nossa própria indolência, ignorância ou
loucura". Estes são apenas alguns exemplos do quanto a razão se faz
necessária, para que tenhamos discernimento para julgar e agir em cada
situação.
O filósofo norte-americano Will Durant
reflete: "O instinto talvez nos tenha bastado no primitivo estágio de
caçadores; é por isso que nossos impulsos naturais nos levam mais à caça do que
ao trabalho da terra, e periodicamente sonhamos com o 'retorno à natureza'. Mas
desde que a civilização começou, o instinto se faz inadequado e a vida teve que
pedir socorro à razão".
Não fosse esse resquício de
racionalidade existente na mente humana, e o homem talvez já houvesse
desaparecido do Planeta. Até mesmo em decorrência da sua fragilidade. Em termos
de força física, é muito inferior a inúmeras espécies de animais, os quais
domina apenas pela sua inteligência, que o leva a fabricar armas que o tornam
poderoso e com as quais as supera. Além disso, criou leis e códigos morais que
impedem que os mais fortes do próprio gênero humano escravizem, dominem ou
eliminem semelhantes mais fracos.
Para chegar a esse estágio, gerações e
mais gerações juntaram experiências e deram sua contribuição ao direito e à
ética. A atividade humana onde mais conflitam instinto e razão é a religião.
Instintivamente, por medo, recorremos
sempre a um ser superior, de grande poder, que nos proteja de fenômenos que não
compreendemos e que nos "ameaçam". O desconhecido sempre atemoriza.
Nas religiões mais primitivas, as divindades (são múltiplas) são iracundas,
eróticas, vingativas, com as piores características humanas e que se impõem pela
força e pelo castigo.
Só
indivíduos com a racionalidade desenvolvida entendem que essa sabedoria
universal, que criou e rege com leis simples e imutáveis galáxias, estrelas,
planetas e tudo o que há (vivente ou não); que fez a matéria e a energia e que
mantém tudo funcionando com a precisão de um relógio, é construtiva, positiva,
paternal e protetora. É amor e não rancor. É razão e não instinto. Não requer
de nós sacrifícios ou pavores.
Albert Einstein, em um de seus livros,
observou: "Quanto mais avança a evolução espiritual da humanidade, tanto
mais certo me parece que o caminho para a religiosidade genuína não passa pelo
medo da vida, nem pelo medo da morte, nem pela fé cega, mas pelo esforço por
atingir o conhecimento racional. Neste sentido, creio que o sacerdote tem que
se tornar professor, se deseja fazer jus à sua sublime missão educativa".
O que não se pode é explorar as angústias e a falta de luz de mentes simples
para manipular essa gente primitiva.
Quanto mais racionalidade houver na
crença religiosa --- desprovida de
lendas, ídolos e ritos --- mais próximos
estaremos do Deus verdadeiro, fonte de onde emanam a sabedoria, a ciência e a
vida, do qual somos a imagem e semelhança. A razão tem avanços e retrocessos, dependendo
de como cada geração é educada pela que a precedeu.
Alois Góta observa: "Há um
processo vital no universo, no mundo, no planeta, nos continentes, nas
culturas, nos povos, nas tribos humanas, que se movimenta e enfraquece, que
ganha força e atinge seu máximo, para declinar e renascer uma vez mais,
infinitamente". A racionalidade também tem esses ciclos. Mas é preciso que
nunca decline ao ponto de ser ofuscada pelos instintos. Seria o fim desta ainda
precária civilização...
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas
(atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e
do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova
utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991
a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição
comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Depois que o Rio Doce morreu o desalento tomou conta de mim. Procurando algo em que confiar.
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