sexta-feira, 15 de maio de 2015

Confissões


* Por William Somerset Maugham


... O primeiro assunto que atraiu minha atenção foi religião. Parecia para mim de grande importância decidir se este mundo em que eu vivia era o único que eu tinha que reconhecer ou se eu deveria encará-lo como um lugar de experiências que me prepararia para uma vida futura. Quando escrevi Servidão Humana, dediquei um capítulo sobre a perda, que sofrera meu herói, da fé em que fora criado. Os originais do livro foram lidos por uma mulher muito inteligente que naquele tempo tinha a bondade de interessar-se por mim. Disse-me ela que aquele capítulo era inadequado. Eu o reescrevi; mas não penso que o melhorei. Dado que ele descrevia minha própria experiência, eu não tinha dúvidas que minhas razões para chegar às conclusões que cheguei eram inadequadas. Elas eram as razões de um menino ignorante. Elas vinham do coração não da cabeça.

Quando meus pais faleceram eu fui morar com meu tio que era um pastor. Ele era um cinquentão, sem filhos, e eu estou certo que era um grande aborrecimento ter sobre si a responsabilidade das pressões de um pequeno garoto. Ele dizia orações pela manhã e à tarde, e íamos à igreja duas vezes no domingo. Domingo era o dia ocupado. Meu tio sempre dizia que ele era o único homem que trabalhava sete dias por semana. Na verdade ele era incrivelmente preguiçoso e deixava todo o trabalho da paróquia para seu cura e seus tesoureiros. Mas eu era impressionável e logo me tornei bastante religioso. Eu aceitava o que me era dito como verdade inquestionável, tanto no vicariato do meu tio, como posteriormente na escola.

Havia um ponto que imediatamente me afligiu. Eu não estava há muito tempo na escola antes de descobrir, através do ridículo pelo qual eu era exposto e das humilhações que eu sofria, o infortúnio que representava para mim, a minha gagueira; e eu tinha lido na Bíblia que se você tem fé você pode mover montanhas. Meu tio assegurava-me que isso era literalmente um fato.

Certa noite, nas vésperas de voltar para a escola, eu rezei a Deus com todo meu espírito para que ele levasse embora minha limitação; e com essa fé fui dormir, seguro de que quando acordasse na manhã seguinte eu seria capaz de falar como qualquer pessoa. Eu me imaginei diante da surpresa dos garotos (eu estava ainda no primeiro grau) quando eles descobrissem que eu não gaguejava mais. Acordei cheio de exultação e foi um choque real, terrível, quando descobri que eu gaguejava mais do que nunca.

Eu cresci. Fui para a King's School. Os mestres eram religiosos; eram estúpidos e irascíveis. Eles eram impacientes com minha gagueira, e se não me ignoravam completamente, o que eu preferia, me intimidavam. Pareciam considerar como minha culpa o fato de eu gaguejar.

(.......Eu estava muito aborrecido com todo o dia-a-dia de igreja que era jogado sobre mim, tanto em casa quanto na escola e, ao partir para a Alemanha eu saudei a liberdade que me permitiu ficar fora disso. Mas duas ou três vezes, movido pela curiosidade, eu fui à Santa Missa na Igreja Jesuíta em Heidelberg. (....... O Paraíso foi reservado para os membros da igreja da Inglaterra. Eu aceitava como uma grande graça de Deus o fato de eu ter sido educado naquela comunhão. Era maravilhoso ter nascido Inglês.

(.......E agora na Santa Missa em Heidelberg eu não podia deixar de notar que os estudantes que enchiam a igreja até às portas, pareciam bastante devotos. Eles tinham, realmente, toda a aparência de acreditar em sua religião tão sinceramente quanto eu acreditava na minha. Era estranho que eles pudessem porque, com toda a certeza, eu sabia que a deles era falsa e a minha a verdadeira.

(.......Assolou-me a idéia de que eu poderia muito bem ter nascido na Alemanha e então teria sido naturalmente criado como um católico. Achei muito duro que, sem ter nenhuma culpa própria, assim eu seria condenado ao tormento eterno. Minha natureza ingênua revoltou-se com essa injustiça. O próximo passo foi fácil. (........Mas as crenças que me haviam sido instiladas se apoiavam uma nas outras e quando uma delas veio a ser ofendida as demais participaram do mesmo destino. Toda a horrível estrutura, baseada não no amor de Deus mas no medo do inferno, ruiu como um castelo de cartas.

Com o espírito em disponibilidade, deixei de acreditar em Deus; Eu senti a felicidade de uma nova liberdade. Mas nós não acreditamos unicamente com o espírito; em algum profundo recesso de minha alma ainda permaneceu o velho temor do fogo do inferno, e por muito tempo minha exultação foi temperada pela sombra dessa angústia ancestral. Eu não acreditava mais em Deus; mas no fundo,ainda acreditava no Diabo.

(.......Eu me denominava agnóstico, mas no meu sangue e nos meus ossos eu considerava Deus como uma hipótese que um homem racional tem que rejeitar.       (.......Eu ainda não resolvi com o Diabo. O problema oprime quando você considera se Deus existe, e se existe, que natureza deve ser atribuída a ele.

(.......Eu não consigo penetrar nesse mistério. Permaneço como agnóstico, e a consequência prática do agnosticismo é que você age como se Deus não existisse.


* Romancista e dramaturgo britânico

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