“Lumbrigueiro”
* Por
Mara Narciso
Milena, a minha mãe,
me contou que, quando era criança, como fazia de tempos em tempos, a minha avó
Dona Du deu “lumbrigueiro” para todos da casa e uma das suas irmãs encheu o
“urinol” de vermes (parasitas do intestino). Os tempos eram outros, e mesmo na
cidade não havia tratamento adequado de água (encanada, mas precária) e não
havia esgoto. As casas eram servidas por fossa séptica. Água servida corria
pelas ruas e podiam-se ver porcos e outros animais circulando fora dos
quintais.
Naquela época, o
normal era as crianças terem vermes, então chamados de lombrigas. Este nome se
refere mais especificamente ao Áscaris lombricóides, então generalizado. E os
lombrigueiros ou vermífugos tinham essa denominação, com um “u” no lugar do “o”
na hora de falar, devido ao regionalismo. A minha avó, nascida em 1910, saiu do
curso de normalista (ensino médio profissionalizante de professora primária)
dois meses antes da formatura para se casar. Tinha dons de enfermeira, pois
entendia de ervas, banhos, chás e aplicava injeções. Dr. Geraldo Machado, o
Bilé, seu sobrinho, afilhado e médico tinha um consultório no centro da cidade,
no qual minha avó ia de vez em quando buscar novidades e de lá trazia amostras
grátis e bulas de remédio. Fui muitas vezes com ela. Meu avô Petronilho fazia
graça dizendo: hoje dona Du tem literatura.
Meus avós tinham mania
de limpeza, de lavarem frequentemente as mãos, desinfetarem as coisas com
álcool. Então, fico pensando na contaminação dos filhos por vermes. Uma vez eu
também expulsei um Áscaris. Tinha uns cinco anos de didade e estava na casa da
minha avó. Fiquei apavorada sentindo o bicho sair a seco, dentro da calcinha, e
gritei: mãe! Está nascendo um rabo em mim!
Tive verme visível só
daquela vez. Era grande, de uns 30 cm, e cor-de-rosa. Depois, no laboratório do
Colégio Imaculada Conceição e na Faculdade de Medicina, vi muitos vidros com a
lombriga, mas era descorada, branca pelo álcool ou formol.
Milena, que se formou
médica aos 40 anos, tinha medo de “xistose”, e quando íamos nadar em algum rio
desconhecido, andava em volta olhando, à procura de resquícios de caramujo.
Perguntava aos moradores e apenas não os achando, dava sua liberação. Verduras
cruas, comprava apenas as de procedência conhecida, pois tinha receio de a
gente pegar verme. Por aqui, era comum molhar as hortas com água contaminada
por esgoto, que já existia por toda a cidade. As folhas tinham larvas, cistos e
ovos de toda a sorte de vermes.
Ainda há o costume de
se dar vermífugo polivalente para crianças nas férias de janeiro e julho.
Quando me perguntam no consultório, informo que o remédio é veneno para verme e
para gente, e que não é bom tomar sem necessidade. Isso é pensamento meu, e não
sei o que a comunidade científica pediátrica acha. Recomendo os cuidados
tradicionais de higiene. Explico que verme entra pela boca (ou pele, ou pés), e
não ocorre geração espontânea. Quem faz a comida deve estar sem vermes, ter as
unhas curtas, lavar as mãos antes de cozinhar. Os demais devem fazer o mesmo,
tendo o cuidado de lavar as mãos com sabão ao ir ao banheiro e lavar frutas e
outros alimentos laváveis antes de comer. O óbvio é desobedecido em muitas
situações, por crianças e adultos.
Sugiro, diante de uma
suspeita, que se faça um exame de fezes. Pode-se fazer a coleta em três dias
para se pegar o ciclo dos vermes, caso haja algum. A esquistossomose raramente
é flagrada em exame de fezes, com seu ovo típico com uma espícula (espinho)
lateral, a menos que a infestação seja muito grande. O Enterobius vermicularis
ou Oxiuros, aquele que ataca à noite, quando vem botar ovos no meio exterior, e
causa coceira anal, não costuma se mostrar em exames de fezes comuns e devem
ser capturados com um exame colhido com um bastão, geralmente no laboratório,
chamado “swab anal”. Atualmente, a incidência maior é de protozoários (uma
única célula e invisíveis) ameba e giárdia.
Quando a mães dizem
que os exames de fezes são negativos, eu afirmo que a maior possibilidade é que
não haja verme. Quando der positivo, faz-se o tratamento. E hoje, embora
algumas pessoas sejam avessas a lavar as mãos, a incidência de verminose se
reduziu em todas as classes (água tratada e esgoto em toda a cidade, pessoas
calçadas e nutridas). As consequências disso são crianças maiores e mais
pesadas e uma puberdade que chega bem mais cedo do que antigamente. A
repugnante imagem de um “urinol” pululando de lombrigas ficou no passado.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Contradizendo um pouco os saudosistas - nos quais me incluo - nem tudo no passado era melhor... Muito bom texto, Mara. A título de curiosidade: o primo-irmão de meu avô, cientista Manuel Pirajá da Silva, foi quem descobriu ser o schistosoma mansoni o agente transmissor da esquistossomose. Abraços.
ResponderExcluirChiquérrimo. Seu primo-bisavô prestou um serviço impagável a humanidade. A "xistose" é doença gravíssima, e ainda prevalente no norte de Minas. Agradeço a atenção e os acréscimos, Marcelo.
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