Sob o flamboyant
* Por
Marco Albertim
Gercina é uma negra de
oitenta anos que vive serena a longevidade do costado. Enxerga, sem dizer nada,
cada episódio vivido por ela mesma, desde que desembarcara de uma canoa à vela,
depois de seis horas de viagem, sentada no tronco duro de um cedro no fundo da
embarcação. Com doze anos, os cambitos finos e com listras cinzentas de tanto
coçar com as unhas compridas.
Agora está sozinha; na
casa de alvenaria com o reboco meio estropiado, e na raiz exposta do enorme
flamboyant. A casa é de sua propriedade, mas a árvore está em frente à casa da
patroa, um chalé à beira-mar de Acaú onde a viúva de olhos verdes, tez
acobreada, acolhe-a para a faxina doméstica e a comedoria pouca, inda que
caprichosa.
Gercina tem um
telefone celular dado pela patroa. O aparelho em sua mão rugosa tem estrias nos
lados e atrás; é grosso, posto que de primeira geração. Ela não o usa com
curiosidade ou bulício nos dedos, só para atender aos chamados de dona
Edileusa.
Mas atendera ao último
chamado, na noite de véspera de quando foi vista sentada na raiz do flamboaiã.
No meio da tarde. A sombra da árvore ajudou-a a remontar no juízo, minúcias de
sua vida, a partir de marcas do próprio corpo.
Assim, coçou com as
pontas do indicador e do maior de todos, a sola do pé direito. Não sentia mais
dores do furo que sofrera, assim que pusera os pés nus na areia fina do canal
de Pontinha. O anequim sob a areia, sentindo a pressão do corpo magro de
Gercina, eriçara o espinho de ponta fina no dorso marrom, deixando escapar a
porção de veneno. Ela já ouvira falar da furada do anequim. Os donos de canoas
tinham o costume de deixar o peixe no fundo da canoa, com alguma água para que
demorasse a morrer. Os moleques, inadvertidos, subindo nas canoas para da popa
mergulhar na água escura do canal, pegavam no bicho e sofriam o aguilhão da
espetada.
Gercina, aos berros,
assustara os pescadores deitados nas esteiras das caiçaras. Agora, coçando no
lugar onde a dor zunira com furor, sentia o torpor macio do afago dos dedos.
Depois daquela dor,
veio outra, dez anos já passados do contato com o anequim. O sopro do vento,
acima e no meio do tronco do flamboaiã, fez Gercina subir a mão para o lado
interno do joelho direito. Socou o dedo mindinho, àquela altura tão grosso
quanto um graveto ainda verde da árvore, na cicatriz em forma de buraco ao lado
do joelho. Na covinha de carne, o mindinho enrosca-se como o maior de todos num
dedal. Ainda hoje ela sente alguma estranheza; é como entranhar o dedo nas
carnes, sem o prejuízo do sangramento.
A covinha, ela viu
abrir-se depois de cair de lado da jangada de troncos de cortiça. A jangada,
com a vela esticada, abaulada pela força do vento, descera o peito da proa para
as águas, depois de subir para a frente passada uma onda alta. Os troncos da
proa rugiram na pancada com as águas. Gercina sentiu o susto, caiu de lado e a
lateral do joelho deixou-se prender na ponta de uma das varas que uniam um
tronco a outro. A perna direita fincou-se na extremidade pontiaguda da vara. Só
soltou um gemido grosso, sinistro, dando conta da corda vocal que com o tempo
engrossaria para soar como um búzio trombeteando. Ficou o buraco; com ele, a
lembrança do homem que a levara para a pescaria. Ele a trouxera de volta à
jangada; tornou a jogar água no sangramento, amaciando o furo com as comissuras
de seus dedos grossos. A mão subiu para as coxas de Gercina, os dedos
esticaram-se entre um lado e outro do talho vaginal. Ela esqueceu a dor do
joelho na gemedeira da voz, do corpo estrebuchando-se do gozo molhado da água
salgada.
Gercina e Amauri não
quiseram se casar na igreja nem no cartório. Não havia igreja em Acaú, e o
cartório só havia em Alhandra, distante dali cinquenta quilômetros. Ninguém na
vizinhança censurou o casal que dispensara padre e tabelião. Tinham em comum o
hábito da poupança de gastos.
Nunca entendera, nem
ela nem Amauri, por que nunca emprenhara; e isso ela ainda se pergunta com os
braços cruzados, apoiados na curva da barriga abaulada. Gercina é viúva;
conforme os cálculos de seu juízo, igual a dona Edileusa.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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