Perfume
chinfrim (2)
* Por
Marco Albertim
Com a chuva não
prevista, a planura do pequeno vale abaixo das duas casas, a de moradia e a de
farinha, foi coberta por um lençol d'água cuja força de destruição só não foi
sentida, porque não havia plantio. Mas o capim verde, da altura da cintura dos
homens abrigados na casa de farinha, ficou apenas com os olhos acima da
superfície da água. O riacho sumido, não fosse a mira dos camponeses sobre o
tamanho e os recursos da terra, deixou uma lembrança cuja promessa de
reaparição renovava-se em medida igual às águas da chuva que o cobrira. Não era
um vale fundo, mas o barranco de terra nivelado dando apoio às duas casas, os
dois lados de rodovia em volta e uma estrada de piçarra vermelha com acesso
principal na rodovia, punham o vale abaixo dos olhos de quem o olhasse. Nas
encostas dos lados, com exceção do barranco, uma comprida e rala mata de
bambuzal dificultava a visão de quem o enxergasse de cima.
Os homens se
arrancharam na casa de farinha, meio sonolentos. Na curta madrugada, com os
olhos fechados, tiveram tempo de descansar e tiraram proveito para urdir sobre
como as braças de terra seriam medidas e distribuídas.. Encostaram-se nos lados
do forno sem uso; outros, com as roupas meio estropiadas, os fundos sujos da
poeira nos assentos, sentaram-se na bandeja do forno. Os mais pobres, alguns
com camisa com apenas dois botões para fechar os lados, não tinham chapéu. O
resto, inda que com aparência melhor, não tinha posses mas as calças inteiras
estavam apenas machucadas, e as camisas tinham botões de cima a baixo; o que
mais os distinguia era o chapéu de feltro com a cor esmorecida; nunca o tiravam
da cabeça, a não ser para dormir. Com o dia, entre um palpite e outro sobre as
chances de se tornarem donos da terra, os que tinham mais prumo nos urdumes
removiam o chapéu para um dos lados ou
para trás, onde os dedos coçavam com preguiça e distraíam algum traço de
desconfiança na fronte de quem ouvia.
A mulher que aparecera
na porta da casa atraída pela fumaça cheirosa do café no bule de ágata,
primeiro enxergara nas brasas dos gravetos entre três seixos no chão, o lume
que podia avivar-lhe os olhos rendidos à
pasmaceira do brejo deserto. Trouxera um banco de madeira da casa; a madeira do
assento há muito perdera a cor, e mantinha-se lisa, encerada pelo uso dos
primeiros donos da casa. Sentada, ela ouviu a primeira pergunta e manteve-se
indiferente ante a possibilidade de sentir as entranhas da alma expostas.
- São filhos da senhora?
- Não.
Podia se manter
reticente ou mesmo não responder, visto que até então se mantivera encoberta,
rendida às recusas até mesmo da paróquia de Vitória de Santo Antão, onde,
quando as pernas recobravam força, ganhava de um ou de outro uma sobra de
comida. Mas os homens haviam consentido que requentasse as entranhas com o café
quente. Acrescentou:
- São meus netos. A mãe
está em Vitória. Só vem aqui quando tem recurso para fazer uma feira e trazer
comida para os filhos.
- E a casa? De quem é a
casa?
- Não sei não. Sei que
morava uma família aqui com a permissão do dono. Viviam da mandioca que plantavam na beira do riacho. Mas o dono do
Engenho Bento Velho proibiu a plantação e fechou a casa de farinha.
- O dono do Engenho
Bento Velho sabe que a senhora ocupa a casa?
- Sabe. Só deixou
porque eu disse que não tinha intenção de plantar.
De nove horas em
diante, as terras do vale absorvedor moveram-se para engolir as águas. Depois
do meio-dia, só a margem do riacho se manteve coberta por uma lâmina
transparente de água. O viço do vale juntou-se ao cheiro do feijão cozinhado na
mesma trempe que fervera o café. Antes do almoço, Joaquim e Tonico, os mais
moços, viram a chance de pôr a assinatura na ocupação.
- Tonico. - ordenou Joaquim - Está na hora
levantar a bandeira.
Tonico desceu o barranco com habilidade nas pernas finas.
Num outeiro à frente da margem do riacho, enfiou a vara depois de afiar com a
faca o gume da base. Em cima, a bandeira vermelha do MST tremelicou feito os galhos
do bambuzal no vento.
No fim da tarde, o
mesmo caminhão que os trouxera da feira de Vitória de Santo Antão, estacionou
na margem da rodovia. Lonas de plásticos foram distribuídas para a construção
de barracas enquanto o plantio tivesse curso.
Na estrada de piçarra,
uma mulher descera de um cavalo enquanto o homem que a trouxera permaneceu na
sela. Com o chapéu na cabeça, o relho na mão direita e o olhar duro, viu a mulher cruzar o vale rumo à casa
de farinha.
- É o dono do Engenho
Bento Velho - disse a velha.
A mulher tirara as
sandálias de couro. À medida que se aproximava, distinguiram o batom encarnado
nos lábios finos, o ruge no rosto sem covas. Um par de brincos à mostra, com
brilho duvidoso. De resto, um perfume tão chinfrim quanto o vestido de algodão
impuro.
- É a minha filha... -
acrescentou a velha.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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