quarta-feira, 3 de março de 2010




Ciúme é indício de amor

* Por Mara Narciso

Durante o namoro, o rapaz deixava a casa da moça e ligava para se certificar de que ela permanecia em casa. Costumava aparecer de súbito. Depois passou a ir ao local de trabalho. Chegava numa hora qualquer, quando deveria estar longe, em seu próprio trabalho. Seguia a moça, de longe, fazendo vistoria do seu comportamento.

Desde o começo, deixou claro que a corda, instalada no pescoço da namorada, seria curta, algo que não a impedisse de ir até ao muro, porém não a deixasse ir além, e para isso mantinha vigilância permanente. Reclamava pouco, e quem os visse, não notaria nada. Ela tinha amigas e amigos, e ele parecia permitir, já que nada fora proibido, apenas sugerido. No calor da paixão e da novidade, não custava muito seguir a orientação do namorado, logo transformado em noivo.

Após dois anos de relacionamento o casamento aconteceu, oficializou-se, e as regras mantiveram-se ditadas por ele. Nos momentos íntimos exigia de maneira firme, que ela fosse fiel, e que jamais pertencesse a outro homem. Da parte dele, procurava sexo todos os dias.

Com dois filhos, o casal de classe média alta usufruía com gosto o que o dinheiro compra. A mulher usava um dos carros de luxo, enquanto o homem usava o outro, riscando toda a cidade. Assim como fazia no tempo de namoro, também agora era comum ele aparecer de uma hora para outra, dando uma incerta no escritório.

O chefe dela era um homem mais velho, e trabalhavam diretamente todo o dia. Nada havia entre funcionária e patrão, mas, para o homem, eles eram amantes e precisava chegar de surpresa para pôr fim ao romance. Nem atendia aos argumentos da recepcionista: abria a porta para ver a esposa no colo do patrão; mas nunca viu nada.

O celular dela, há tempos, era aberto por ele em busca de ligações clandestinas. Não contente por não ter descoberto coisa alguma, passou não só a ver quem tinha ligado e as chamadas feitas, como também a checar as origens das conversações. Aos poucos, mesmo com os vivos protestos dela, o marido repassava os números, religando para toda a lista. Na primeira vez, ela partiu pra cima dele, dizendo-se ultrajada e que não aceitaria aquela invasão. Apenas na primeira vez, pois as checagens continuavam depois que a mulher dormia. Toda noite, o marido vasculhava e telefonava para quem tinha falado com a mulher. Uma vez ela apagou os telefonemas feitos, mas foi pior, enfurecido, ele por pouco não a agrediu fisicamente. Então, achou melhor deixar tudo lá.

Os dois, casados há dez anos, passaram a fazer do ciúme um motor para continuar. Todos os dias o homem repassava, num tom vários decibéis acima do razoável, a cantilena sobre traição, que faria isso e aquilo, caso descobrisse algo. A paranóia infiltrou-se no casal de tal forma, que a esposa, inconscientemente gostando, entrou na onda. Embora garantisse não haver nada, com o tempo, passou a fazer arzinho de mistério. Deu a entender a possibilidade de ter alguém, com conseqüente ampliação da loucura marital. O sentimento humano pode ser obscuro, e para os dois, o risco travestiu-se em efeito erótico.

Certa noite ele a deixou dormir para acordá-la afirmando ter presenciado ao chefe atender a um telefonema dela num bar. Foi sacudida com força, e sofreu novas ameaças. No final, com o desmentido, as coisas terminaram numa sonora gargalhada. A paranóia do marido a estimulava, e ela aumentava a excitação de ambos dando corda, num jogo que crescia.

Durante o sexo, diário e cheio de novidades, o marido exigia que a mulher o chamasse pelo nome de outro e quando ela obedecia, ele, mais excitado, dava gritos e tapas, apertava o pescoço dela, machucando-a, e pedia que ela comparasse os dois. Entre gemidos e palavrões, ela afirmava que o outro era muito maior e melhor do que ele, que não havia termos de comparação. Era o encontro do casal com o clímax.

Entre xingos e berros, o homem dizia que o detetive tinha terminado o serviço, confirmando o adultério. Ao mesmo tempo em que negava, a esposa valorizada com as suspeitas do marido, patologicamente afirmava que era mesmo.

Todos os dias a brincadeira recebia novos ingredientes, novos estímulos para temperar a vida sexual de ambos, que conversavam como se o amante estivesse entre eles, não distante naquele momento, mas, como se estivesse de fato ali, de corpo presente. Estando juntos e a sós, o tema nunca desaparecia de todo, e num dia ela sugeriu ficar com outro na frente dele. O marido falou que ia pensar.

O personagem principal não era o amor, ou o desamor, nem mesmo o casal, mas o amante, que ela negava e confirmava. A traição dela era o elemento indispensável.

Numa noite, durante o sexo, uma onda maior de insanidade invadiu a mente do marido, que errou na dose de entusiasmo e apertou excessivamente o pescoço da esposa. Após alguns minutos de estrangulamento, ele a largou inerte sobre o travesseiro. Viu o que tinha feito, levantou-se e foi conferir os telefonemas dados por ela naquele dia.

* Médica endocrinologista, acadêmica do oitavo período de Jornalismo, e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”

6 comentários:

  1. Relacionamentos doentios que de início
    deixam a mulher se sentindo uma rainha
    amada ao extremo, quando na verdade
    é apenas uma prisão...nossa o texto é
    tão verdadeiro que me arrepia.
    Parabéns.
    Beijos

    ResponderExcluir
  2. O ciume deve ser muito bem temperado para não se transformar em loucura. Muito interessante o texto! Abraço!

    ResponderExcluir
  3. O mote da minha literatura. O ciúme patológico leva a agressão física e verbal, a loucura e a morte ( assassinato ou suicídio ) . Eu diria que é o amor desgovernado, alimentando a paixão desequilibrada.
    Alguns casais precisam de uma dose extra de excitação para a sobrevivência da relação.
    Puro vazio.
    Ou seria o amor perfeito e nós imperfeitos para amar ?
    Quem ama mata. Quem ama sente ciúme.
    Cada um escolhe a sua maneira para ser feliz.
    Sade tinha razão : "Mate-me novamente ou aceite-me como eu sou, por qu eu não mudarei."
    Será que tudo começou com ele ?

    ResponderExcluir
  4. Partindo de um fato do mundo real, fiz o relato num crescendo de loucura chegando a cada dia mais perto de um fim trágico. Os exageros sem medida estão mais perto do que pensamos. Gostei da complexidade da sua análise Celamar, bem maior do que o texto. Sayonara, o ciúme pode ser assustador. Núbia, obrigada pelo comentário elogioso.

    ResponderExcluir
  5. Nossa, Mara, que conto incrível! Uma relação assim doentia só poderia mesmo terminar em tragédia! Parabéns pelo texto!
    Beijos

    ResponderExcluir
  6. Pois é Risomar, mesmo que eu quisesse, seria impossível evitar a tragédia. A obsessão devora qualquer racionalidade. Agradeço o comentário.

    ResponderExcluir