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A rotina do fascismo em “A fita branca”
* Por Marco Albertim
No filme do austríaco Michael Haneke, distingue-se um modo de agir, de pensar; algo como um código de honra cujo descumprimento implica castigos cruéis. A vida é vivida sob normas rígidas, ortodoxas. Não há flexibilidade, não se vê nuances. Daí, o deslize é punido com a morte, para a sobrevivência da “inocência”. Numa aldeia alemã, os notáveis são o barão e a baronesa, proprietários de terras; o pastor, o reitor, o médico, a parteira e dezenas de camponeses a serviço do barão. Há um narrador oculto, com voz de velho, vivido nos episódios pelo professor de 31 anos; o professor, diga-se, é o único que não protagoniza os métodos de coerção explícita na administração do vilarejo; assiste, impotente, perplexo, investigando a seu modo, a perspectiva de solução dos mistérios, a partir do acidente sofrido pelo médico, cujo cavalo tropeça num arame invisível na porteira de sua casa.
Se o médico é punido sob suspeita de ter sido o responsável pela morte da esposa, ou por “bolinar” a filha de 14 anos, o caso dá margem a uma série de outros, em que as relações interfamiliares são marcadas pela submissão ao chefe patriarca, ou ao rico barão que utiliza o púlpito da igreja para reiterar sua autoridade. É um fascismo nascente, consagrado, ungido pelo pastor Pfarrer. Personagem de proa, o pastor encarna a ideologia da Alemanha já capitalista, com os vícios do medievo. Dele, o diretor de A fita branca tirou o título do filme, porquanto suas filhas usam fita branca no braço para se manterem distantes do “pecado”. A religiosidade rancorosa força-o a manter os braços do filho amarrados enquanto dorme, para evitar que se masturbe. Ele contracena com o professor, também personagem de proa, no plano oposto ao do religioso. O professor é o fio que conduz à explicação das misteriosas punições.
O médico não prega o pensamento medieval, absorve-o, pratica-o na relação com a assistente e amante. Subjugando-a sexualmente, diz: “Você é feia, flácida e tem mau hálito. Tenho nojo de você.” Ela defende-se, diz que tem úlcera. Ao que ele, irredutível, responde: “Por que não cai morta?” O clímax é atingido na cena em que ele surge de costas para a câmara, escondendo-se do filho menino. A sua frente, a filha bolinada... A fita branca tem diálogos curtos, cenas longas, tudo tão denso quanto a pictografia em preto e branco; não há informação à toa, tudo tem um significado. 144 minutos de tensão.
Impressiona a performance dos atores crianças, em particular o filho do pastor; o papel não exige muitas palavras; antes isso, porque o silêncio do menino é como um tumor mudo, prestes a supurar na face. “Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria.” A afirmação é de Michael Haneke em entrevista, minimizando as suspeitas de que seu filme procura apenas identificar as origens do nazismo. Com razão. Há um quadro de perversidades decorrentes das relações patriarcais.
O filme perderia em muito se os responsáveis pelas punições ficassem explícitos. É justo no final que a densidade dos mistérios não abre mão do que há de mais precioso nos episódios, como um segredo de catacumbas. Nas crianças, no entanto, os sentimentos punitivos convivem com a inocência.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
No filme do austríaco Michael Haneke, distingue-se um modo de agir, de pensar; algo como um código de honra cujo descumprimento implica castigos cruéis. A vida é vivida sob normas rígidas, ortodoxas. Não há flexibilidade, não se vê nuances. Daí, o deslize é punido com a morte, para a sobrevivência da “inocência”. Numa aldeia alemã, os notáveis são o barão e a baronesa, proprietários de terras; o pastor, o reitor, o médico, a parteira e dezenas de camponeses a serviço do barão. Há um narrador oculto, com voz de velho, vivido nos episódios pelo professor de 31 anos; o professor, diga-se, é o único que não protagoniza os métodos de coerção explícita na administração do vilarejo; assiste, impotente, perplexo, investigando a seu modo, a perspectiva de solução dos mistérios, a partir do acidente sofrido pelo médico, cujo cavalo tropeça num arame invisível na porteira de sua casa.
Se o médico é punido sob suspeita de ter sido o responsável pela morte da esposa, ou por “bolinar” a filha de 14 anos, o caso dá margem a uma série de outros, em que as relações interfamiliares são marcadas pela submissão ao chefe patriarca, ou ao rico barão que utiliza o púlpito da igreja para reiterar sua autoridade. É um fascismo nascente, consagrado, ungido pelo pastor Pfarrer. Personagem de proa, o pastor encarna a ideologia da Alemanha já capitalista, com os vícios do medievo. Dele, o diretor de A fita branca tirou o título do filme, porquanto suas filhas usam fita branca no braço para se manterem distantes do “pecado”. A religiosidade rancorosa força-o a manter os braços do filho amarrados enquanto dorme, para evitar que se masturbe. Ele contracena com o professor, também personagem de proa, no plano oposto ao do religioso. O professor é o fio que conduz à explicação das misteriosas punições.
O médico não prega o pensamento medieval, absorve-o, pratica-o na relação com a assistente e amante. Subjugando-a sexualmente, diz: “Você é feia, flácida e tem mau hálito. Tenho nojo de você.” Ela defende-se, diz que tem úlcera. Ao que ele, irredutível, responde: “Por que não cai morta?” O clímax é atingido na cena em que ele surge de costas para a câmara, escondendo-se do filho menino. A sua frente, a filha bolinada... A fita branca tem diálogos curtos, cenas longas, tudo tão denso quanto a pictografia em preto e branco; não há informação à toa, tudo tem um significado. 144 minutos de tensão.
Impressiona a performance dos atores crianças, em particular o filho do pastor; o papel não exige muitas palavras; antes isso, porque o silêncio do menino é como um tumor mudo, prestes a supurar na face. “Se você constrói uma idéia de uma forma absoluta, ela vira uma ideologia. E isso ajuda àqueles que não têm possibilidade alguma de se defender de seguir essa ideologia como uma forma de escapar da própria miséria.” A afirmação é de Michael Haneke em entrevista, minimizando as suspeitas de que seu filme procura apenas identificar as origens do nazismo. Com razão. Há um quadro de perversidades decorrentes das relações patriarcais.
O filme perderia em muito se os responsáveis pelas punições ficassem explícitos. É justo no final que a densidade dos mistérios não abre mão do que há de mais precioso nos episódios, como um segredo de catacumbas. Nas crianças, no entanto, os sentimentos punitivos convivem com a inocência.
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Uma narrativa bem escrita
ResponderExcluire instigante que desperta
a curiosidade.
Abraços
História densa e complexa sobre o comportamento humano. A repressão sexual é a bandeira de frente de todas as outras repressões. Disfarçada de moralismo religioso a opressão quer capturar a alma e a vontade de todos, culminando em ganhos políticos e econômicos para alguém ou um grupo.
ResponderExcluirMarco
ResponderExcluirSeu texto me deu vontade de ir correndo assistir ao filme. Parabéns!
Beijos