quarta-feira, 2 de dezembro de 2009




Sonhar no Sertão

* Por Seu Pedro


Sem conhecer forno de microondas, o que é Internet e nem a utilidade de um terminal rodoviário, Do Carmo arrumou a mala de couro bruto, com algumas peças de roupa, certidão de seu nascimento e de óbito de sua mãe solteira. Era sua carta de alforria, aos dezenove anos, que completou no dia anterior. Nunca havia saído daquela pequena localidade de Lagoa dos Aflitos, a não ser para levar à venda, na feira, batatas-doces, mamões verdes e maxixes, que fazia de ganha-pão. “Pão sem manteiga”, costuma dizer. E foi na feira que ela ouviu falar da vida melhor que o sertanejo acha que vai achar nas cidades grandes. “Na terra da garoa, na cidade maravilhosa, ou onde há bons empregos e ricas patroas”, sonhava ela.

Foi assim que depois de pegar uma carona no transporte dos verdureiros e de ter percorrido quase cem quilômetros, mal-sentada em cima de um caixote, na carroceria aberta, sentindo cheiro do gás de cozinha, que movimenta as velhas caminhonetes no Sertão afora, Do Carmo estava, enfim, em frente a um ônibus com ar-condicionado, onde soletrou seu destino. Ia para uma grande cidade! Convidada a embarcar, parou, rapidamente no segundo degrau que levava ao interior do veículo, encantada com o ambiente de viagem. Nem reparou que tantos outros passageiros homens encantavam-se, também, com seu corpo moreno, que nem parecia maltratado, adornado com um leve e quase transparente vestido de chita, que a deixava tão inocente, quanto na verdade era.

O ônibus em movimento, os sacolejos no asfalto esburacado, a água mineral do copinho gotejando em seu colo, a janela de cortina aberta e lá fora o movimento que prendia os olhares da jovem. Duas lágrimas deles caem ao cortar a região em que foi criada. Quando menina, montava no lombo do jegue, e na época da safra, chupava umbus até se fartar. Seu universo de criança se resumia à escola de classe mista. A merenda escolar era a principal refeição do dia. A boneca de pano, que ganhou da madrinha, conservada com ela, seguia viagem, espremida na bagagem. Do Carmo cochilou, sonhando em ser feliz. Se é que já não havia sido!

Ao seu lado um jovem, pouco mais velho, também migrando, tentava tocar com as pontas de seus dedos a mão esquerda de Do Carmo, pendida para o seu lado, esquecida pela profundeza do cochilo. Ela acorda com o carinho, sorri, e pergunta se ele também ia ao encontro da felicidade. Januário, moreno, olhos verdes, nunca teria sido feliz em Mocambo, localidade de característica idêntica e vizinha a Lagoa dos Aflitos? Por que tão próximos tiveram que se conhecer em caminho de duas aventuras? Nem ao menos tinham destino certo na grande cidade. Januário explicou que, ao chegar à cidade de destino, compraria um jornal de anúncios de emprego, o que haviam lhe ensinado, e ali estaria seu destino. Pretendia ser jardineiro, acostumado que estava a lidar com a flora sertaneja.

Primeira parada. Almoço juntos. E já de mãos dadas, Januário e Do Carmo dividem o valor de uma refeição, saboreada aos sorrisos e aos sonhos. Imaginavam que um dia aquilo poderia estar acontecendo em um ambiente de lar. Ela pediu que procurasse com atenção nos classificados, ao chegar ao destino do ônibus, algum patrão que necessitasse de uma boa faxineira. Caprichosa ela era. E de um jardineiro também. Era o amor evoluindo a cada quilometro rodado! Cai a noite e os ombros substituem os travesseiros. E amor sertanejo, em sua linguagem própria, vai se revelando, em palavras ditas em tom baixo e abafado pela cortina e janela, agora fechadas. O ônibus já não era tão confortável como no início da viagem.

Ansiosa, já amando e sonhando com sua primeira noite de mulher completa, perguntou ao seu companheiro, já não apenas de viagem, mas de sonhos, também, quando isto aconteceria. Januário, também aflito por este desfecho, contudo, sabia que o pouco dinheiro que tinha, e o que ela também trazia, junto, era pouco para uma noite de lua-de-mel, mesmo que em um hotel de “entra e sai” na periferia de uma rodoviária. Tinham pé no chão e estavam conscientes de que haviam de economizar, até que estivessem empregados e com os primeiros salários em mãos. Fizeram um pacto: teriam pelo menos trinta dias de imaginação, de contorções e gemidos em seus leitos solitários, até a consumação.

Aproxima-se a cidade dos sonhos, a última parada, o lanche de café pingado e os últimos biscoitinhos fritos que Do Carmo trouxera, feitos no seu último uso do fogão a lenha. Pensava em quem ocuparia a sua casa de adobe, agora abandonada a mais de mil quilômetros, construída em terras de terceiros, na terra seca do Sertão, e que pouco valia vender, mais prático era abandonar. Os poucos móveis que tinha havia dado a uma vizinha, a única que sabia para onde ia. Os últimos quilômetros da chegada lhes pareciam mais demorados, e o verde das paisagens, agora trocado pelo colorido das casas, e de longe os grandes prédios, começavam a ser avistados. Os olhares se voltam para a dianteira do ônibus e a expectativa acelera os corações.

- Por que o ônibus parou? – perguntam, entre eles, os passageiros assustados, mais ainda ao perceberem homens encapuzados com um revólver mirado para o motorista. Veio a ordem de “mãos ao alto” e o aviso de assalto. Desmaios, saque. Januário e Do Carmo, abraçados, sentiam-se dependentes um do outro e juraram, então, amor para sempre. Dizem que os anjos lhes trouxeram as alianças.

Bandidos em fuga, ônibus ardendo em chamas, uns pulavam as janelas e outros esperavam passivamente a cremação. Os dois abraçados subiram aos céus envoltos em fumaça. E os sonhos foram trocados pela bruta realidade urbana. Pelos dias, meses e anos seguintes, ninguém do Sertão, nem de Mocambo e nem de Lagoa dos Aflitos, procurou saber onde estavam Januário ou Do Carmo. Seus nomes entraram para o rol dos que morrem clandestinos na guerra fria dos “governos” das metrópoles. Seus poucos familiares esperam que um dia ressuscitem e voltem para a felicidade que desprezaram!

* Seu Pedro é o jornalista Pedro Diedrichs, editor do jornal Vanguarda, de Guanambi, Bahia.


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