
MCP – Universidade Popular
* Por Marco Albertim
Não é com censuras à esquerda que Letícia Remeh mira os 43 anos que separam o fechamento do MCP, das experiências ainda incipientes, hoje, na área de educação, que os governos de esquerda ensaiam. Governos, diga-se, incluindo o de Luiz Inácio. Seu livro Movimento de Cultura Popular – impactos na sociedade pernambucana – já o diz na estampa, não se trata de catar excessos ideológicos que teriam açulado a oligarquia canavieira, selado o impulso golpista desta com militares avessos a camponeses letrados. MCP é uma sigla que ressoa bulício nos dias de Lei Rouanet, Funcultura e outros fundos, estatais ou não, com propósitos de fomento a empreendimentos culturais. Bulício de lembranças, pingos do sonho da revolução simultânea ao conhecimento. Impactos houve? Meia dúzia de intelectuais... Universitários voluntários. A estampa do livro da pedagoga Letícia Remeh é tão lapidar quanto sua disposição no garimpo de depoimentos, todos orais, na reconstituição do que foi o MCP. “(...)impacto” – pouca gente se dá conta de que o MCP não foi somente um experimento de alfabetização popular intramuros.
Nos moldes de uma universidade popular, inspirou-se na experiência do grupo francês Peuple et Culture. Levando cultura e absorvendo cultura, praticou a “circularidade cultural”. É possível deduzir da leitura que o Movimento teve um ícone; Paulo Freire era contrário ao uso de cartilhas de alfabetização, irritou-se com paixão, convencido de que seu método não era invasivo, porque o analfabeto, “com o universo próprio de palavras”, se alfabetiza compreendendo por que até então ninguém se interessara para que ele aprendesse a ler e escrever. Freire não deixou cartilha, deixou “o método”. Inda que pedagoga freiriana, a autora não omite o episódio em que o educador, convidado para ensinar em Angicos, RN, foi, alfabetizou 300 pessoas, mesmo sendo pago pela Aliança para o Progresso, financiando a campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler. “Não tenho medo de dinheiro americano contanto que respeitem o meu trabalho. Eu trabalho com qualquer dinheiro” -, assim reagiu Freire aos comentários. O mago da educação alfabetizava em 40 horas de aula.
Abelardo da Hora, fundador do Movimento, declarou à autora que arquitetou cinco Praças de Cultura no Recife. Na da Torre, em seis dias de funcionamento, 400 livros foram emprestados; em 19 dias, 809 livros. As sinhazinhas dos engenhos, também morando nos sobrados do bairro, por certo empinaram o nariz. O garimpo de Letícia descobriu que o orçamento da prefeitura de Arraes não tinha dotação para pagar a professores. A despesa foi coberta por firmas do comércio local, com a ajuda do Lions Clube do Recife. O Lions aprovara os estatutos do MCP. As firmas foram cadastradas como sociocolaboradoras. Arraes encontrara 50% da população entre 7 e 14 anos sem estudar, por falta de escolas. As unidades, abertas em casas, associações; numa Liga de Dominó cedida para sala de aula, o diretor disse: “Cada escola que se abre, dona, é uma prisão que se fecha...”
A criação da Universidade Popular já estava na mira do prefeito Arraes. Germano Coelho, primeiro presidente do MCP, encarregara-se de maturar o propósito. O embrião da universidade já frutificara na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte com a criação dos Centros de Cultura Popular. O teatrólogo Augusto Boal viera a Recife espiar os teatros do Sítio da Trindade e o de rua. Também o CPC da UNE aqui se inspirara. Ora... o I Festival de Teatro do Recife, promovido pelo Movimento, reunira 15 mil pessoas em 20 dias. Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho montaram a peça A Bomba da Paz, contra a união entre cristãos e comunistas; Hermilo se penitenciaria depois.
O ecletismo no MCP não evitou tensões internas. No depoimento do padre Almeri Bezerra, está assim dito: “E havia, naturalmente, algumas tensões inevitáveis, porque era uma área onde o Partido Comunista tinha muito interesse (...), apesar de já haver um começo de ecumenismo (...)”
O MCP nasceu na casa de Abelardo da Hora, no seu Ateliê Coletivo, por onde passaram Armando Samico, Delano, Clara Charifker. No governo de Pelópidas Silveira, tivera apoio; no de Arraes, institucionalizou-se. Carlos Duarte, do Partido Comunista do Brasil, então presidente da Câmara de Vereadores, fez aprovar lei obrigando a todo prédio ter em sua fachada, obra de artista plástico, painel com esculturas ou pinturas. O propósito era dar trabalho e renda aos artesãos novos.
Conforme a autora ouviu de Germano Coelho, o projeto de lei criando a Universidade Popular tramitou na Câmara Municipal. A experiência durou de 60 a 64. O casarão do Sítio da Trindade foi o primeiro a ficar sob a mira de um tanque de guerra, da “falange” que o hino do MCP entrevira:
Mas, se um dia, as falanges do mal
Contra nós suas armas mover,
Por maior que se faça em perfídia
Não nos pode um covarde vencer.
Somos raios na lua e na paz,
Homens de aço de luzes na mão-
Ao marchar a cultura levamos,
Popular e sublime à Nação
O hino foi musicado pelo maestro Nelson Ferreira. Letícia Rameh mostrou-se historiadora paciente, valorizando grãos de uma rocha que pode se recompor; nos moldes de hoje, com outros atores mas com os ouvidos no bulício de há 43 anos...
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
* Por Marco Albertim
Não é com censuras à esquerda que Letícia Remeh mira os 43 anos que separam o fechamento do MCP, das experiências ainda incipientes, hoje, na área de educação, que os governos de esquerda ensaiam. Governos, diga-se, incluindo o de Luiz Inácio. Seu livro Movimento de Cultura Popular – impactos na sociedade pernambucana – já o diz na estampa, não se trata de catar excessos ideológicos que teriam açulado a oligarquia canavieira, selado o impulso golpista desta com militares avessos a camponeses letrados. MCP é uma sigla que ressoa bulício nos dias de Lei Rouanet, Funcultura e outros fundos, estatais ou não, com propósitos de fomento a empreendimentos culturais. Bulício de lembranças, pingos do sonho da revolução simultânea ao conhecimento. Impactos houve? Meia dúzia de intelectuais... Universitários voluntários. A estampa do livro da pedagoga Letícia Remeh é tão lapidar quanto sua disposição no garimpo de depoimentos, todos orais, na reconstituição do que foi o MCP. “(...)impacto” – pouca gente se dá conta de que o MCP não foi somente um experimento de alfabetização popular intramuros.
Nos moldes de uma universidade popular, inspirou-se na experiência do grupo francês Peuple et Culture. Levando cultura e absorvendo cultura, praticou a “circularidade cultural”. É possível deduzir da leitura que o Movimento teve um ícone; Paulo Freire era contrário ao uso de cartilhas de alfabetização, irritou-se com paixão, convencido de que seu método não era invasivo, porque o analfabeto, “com o universo próprio de palavras”, se alfabetiza compreendendo por que até então ninguém se interessara para que ele aprendesse a ler e escrever. Freire não deixou cartilha, deixou “o método”. Inda que pedagoga freiriana, a autora não omite o episódio em que o educador, convidado para ensinar em Angicos, RN, foi, alfabetizou 300 pessoas, mesmo sendo pago pela Aliança para o Progresso, financiando a campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler. “Não tenho medo de dinheiro americano contanto que respeitem o meu trabalho. Eu trabalho com qualquer dinheiro” -, assim reagiu Freire aos comentários. O mago da educação alfabetizava em 40 horas de aula.
Abelardo da Hora, fundador do Movimento, declarou à autora que arquitetou cinco Praças de Cultura no Recife. Na da Torre, em seis dias de funcionamento, 400 livros foram emprestados; em 19 dias, 809 livros. As sinhazinhas dos engenhos, também morando nos sobrados do bairro, por certo empinaram o nariz. O garimpo de Letícia descobriu que o orçamento da prefeitura de Arraes não tinha dotação para pagar a professores. A despesa foi coberta por firmas do comércio local, com a ajuda do Lions Clube do Recife. O Lions aprovara os estatutos do MCP. As firmas foram cadastradas como sociocolaboradoras. Arraes encontrara 50% da população entre 7 e 14 anos sem estudar, por falta de escolas. As unidades, abertas em casas, associações; numa Liga de Dominó cedida para sala de aula, o diretor disse: “Cada escola que se abre, dona, é uma prisão que se fecha...”
A criação da Universidade Popular já estava na mira do prefeito Arraes. Germano Coelho, primeiro presidente do MCP, encarregara-se de maturar o propósito. O embrião da universidade já frutificara na Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte com a criação dos Centros de Cultura Popular. O teatrólogo Augusto Boal viera a Recife espiar os teatros do Sítio da Trindade e o de rua. Também o CPC da UNE aqui se inspirara. Ora... o I Festival de Teatro do Recife, promovido pelo Movimento, reunira 15 mil pessoas em 20 dias. Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho montaram a peça A Bomba da Paz, contra a união entre cristãos e comunistas; Hermilo se penitenciaria depois.
O ecletismo no MCP não evitou tensões internas. No depoimento do padre Almeri Bezerra, está assim dito: “E havia, naturalmente, algumas tensões inevitáveis, porque era uma área onde o Partido Comunista tinha muito interesse (...), apesar de já haver um começo de ecumenismo (...)”
O MCP nasceu na casa de Abelardo da Hora, no seu Ateliê Coletivo, por onde passaram Armando Samico, Delano, Clara Charifker. No governo de Pelópidas Silveira, tivera apoio; no de Arraes, institucionalizou-se. Carlos Duarte, do Partido Comunista do Brasil, então presidente da Câmara de Vereadores, fez aprovar lei obrigando a todo prédio ter em sua fachada, obra de artista plástico, painel com esculturas ou pinturas. O propósito era dar trabalho e renda aos artesãos novos.
Conforme a autora ouviu de Germano Coelho, o projeto de lei criando a Universidade Popular tramitou na Câmara Municipal. A experiência durou de 60 a 64. O casarão do Sítio da Trindade foi o primeiro a ficar sob a mira de um tanque de guerra, da “falange” que o hino do MCP entrevira:
Mas, se um dia, as falanges do mal
Contra nós suas armas mover,
Por maior que se faça em perfídia
Não nos pode um covarde vencer.
Somos raios na lua e na paz,
Homens de aço de luzes na mão-
Ao marchar a cultura levamos,
Popular e sublime à Nação
O hino foi musicado pelo maestro Nelson Ferreira. Letícia Rameh mostrou-se historiadora paciente, valorizando grãos de uma rocha que pode se recompor; nos moldes de hoje, com outros atores mas com os ouvidos no bulício de há 43 anos...
* Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
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