Mentiroso ou criativo?
O
escritor austríaco, Robert Musil, escreveu, no livro “O homem sem
qualidades”: “A criança é criativa porque é crescimento e se
cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas
ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do
acaso, preelaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem
uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao
destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo,
sufocando-a com um saber artificial e morto e orientando-a no sentido
de finalidades que lhe são estranhas”.
Este
trecho cabe como uma luva para caracterizar o menino imaginativo que
um dia fui e que ainda permanece vivo, posto que adormecido, dentro
de mim. Tive uma infância, digamos, um tanto conturbada, em virtude
de uma poliomielite que me acometeu quando tinha, apenas, seis anos
de idade ou em torno disso). Subitamente, da noite para o dia, me vi
impedido de fazer tudo o que gostava: jogar bola, andar de bicicleta,
empinar papagaio, correr atrás de balões etc.etc.etc.
De
repente, meu mundo ameaçou ruir. Passei a viver uma rotina aflitiva,
caracterizada por médicos, hospitais, fisioterapias, internatos etc.
Mas a vida estava ali, como uma delicada e rara flor, para ser
colhida e apreciada por mim. Como?
Fisicamente
não dava! Não conseguia acompanhar as outras crianças em suas
brincadeiras e isso me frustrava. A intuição infantil, contudo,
sugeriu-me uma solução, uma alternativa, um caminho a seguir. Em
vez da frustração, optei por me valer da imaginação. O que me
impedia de criar um mundo só meu, em que poderia fazer o que e
quando quisesse, como melhor me aprouvesse?! Nada! Foi o que fiz.
Como
tanta criança sempre fez, faz e fará mundo afora, criei um séqüito
de amigos imaginários que me eram sumamente fiéis. Brincavam
comigo, quando ninguém mais queria brincar. Ouviam-me,
compreendiam-me e justificavam-me. Não me abandonavam nem de dia e
nem de noite, chovesse ou fizesse sol.
Cabe
aqui um esclarecimento. Muitos confundem a imaginação infantil com
“mentiras”. Tentam reprimir suas fantasias, sob a argumentação
de que “é feio e, por isso, condenável mentir”. De fato é. O
que falta a esses adultos é lembrar de como eles eram quando
crianças. Ou seja, o que lhes passava pela cabeça naquela fase das
suas vidas?
A
mentira caracteriza-se pela intenção de esconder algo de ruim que
fizemos de alguém e que negamos de pés juntos termos feito ou para,
em geral deliberadamente, enganarmos outras pessoas, visando obter
alguma vantagem por meio ilícito, qualquer que ela seja. Não tem,
pois, muito a ver (diria nada) com a imaginação, sobretudo a
infantil.
Na
época, embora eu já soubesse ler (aprendi com o meu pai, quando
tinha apenas cinco anos de idade, numa velha Bíblia, que nem sei
onde foi parar), não havia lido, ainda, esse marcante livro de
Jonathan Swift, “As viagens de Gulliver”.. Pois não é que
recriei essa história, que nunca até então havia lido (fui lê-la,
apenas, quando já tinha catorze anos) nos mínimos detalhes?! Como?
Não sei.
Nessa
ocasião, eu residia em São Caetano do Sul, cidade operária do ABC
paulista. Morávamos, de forma improvisada, em uma pequena (mas
confortável e aconchegante) casa de fundos, enquanto na frente, meu
pai construía uma residência maior, o dobro daquela, com inúmeras
interrupções na obra, de acordo com a disponibilidade de dinheiro
(que era sempre curto). Levou cinco anos para concluí-la.
Observando
as formigas, passatempo de que gostava demais, no qual despendia
horas e mais horas, dias e mais dias, semanas e mais semanas, dei
asas à imaginação. “Criei” um minimundo povoado por anões tão
pequenos, que mediam, somente, um palmo de altura. E mais, “inventei”
toda uma cidade, em que esses personagens viviam: trabalhavam,
brincavam, amavam, brigavam, se reproduziam, mas, sobretudo,
conversavam comigo e narravam-me fatos das suas vidas.
Devo
dizer que nunca fui considerado mentiroso pelos meus pais. Aliás,
não raro, eu era sincero até demais. Sempre que aparecia alguma
coisa quebrada em casa, por exemplo, e que meus pais queriam culpar
minha irmã por isso, de pronto assumia a culpa, mesmo que isso me
valesse algumas palmadas (e valiam muitas) e horas e horas de
castigo.
Subitamente,
a fantasia dos “anões” liliputianos ganhou ares de “verdade”
em minha mente. Primeiro, falei a respeito deles para um raro
garotinho que se dispunha a brincar comigo quando ninguém mais
queria fazer. Essa alma pura e sem malícia acreditou na minha
história e espalhou-a entre a meninada das redondezas. Subitamente,
me vi diante de plateias crescentes de garotos, ávidos por meus
relatos sobre as peripécias dos tais “anões”. E minhas
narrativas se sucediam, cada vez mais verossímeis, em meio a tanta
inverossimilhança.
O
caso, não sei como, caiu nos ouvidos do meu pai. Certa noite, ele
chamou-me num canto e disse: “Pedrinho, você sabe que é feio
mentir. Você anda contando mentiras para seus amigos?”.
Respondi-lhe, convicto (pois na minha ótica, aquelas histórias eram
muito reais): “Não!”. E não mentia, de fato. Limitava-me a dar
asas à imaginação, com isso estimulando, também, a dos meus
crescentes ouvintes.
Certa
feita, um dos garotos mais incrédulos, desses precocemente
amadurecidos, chamou-se de “mentiroso” na cara, sob apupos
gerais. Irritado, desafiou-me: “Se é verdade, por que você não
nos mostra essa sua cidade de anões?”. Boa pergunta. Como sair
dela? Prometi consultar o líder deles para saber se permitiriam que
outros, que não eu, os vissem. Fui salvo pelo gongo. No dia
seguinte, fui levado por meu pai para um internato, em que passei
longos quatro anos.
Passadas
várias décadas, já adulto, fui considerado por muitos coleguinhas
de então como um “grande mentiroso, um tremendo cara de pau, que
mentia sem ficar vermelho”. A maioria, no entanto, passou a me
considerar como um “competente e criativo contador de histórias”.
E estes amigos queridos passaram, desde então, a me incentivar para
que eu me tornasse um escritor. Deu no que deu!
Na
minha ótica infantil, eu não mentia. Nunca menti. Afinal, assumi
todas as culpas que me eram cabíveis, sem jamais buscar lançá-las
às costas de quem quer que fosse. Meu pai, homem sensível, sábio
e, sobretudo, bom, soube compreender isso e nunca tocou nesse assunto
até sua morte.
Aquele
mundo em miniatura e aquelas criaturas compreensivas e amigáveis de
fato existiam. Aliás, existem até hoje, bem no fundo da minha
memória, na criança que vive em mim. Os adultos é que não eram (e
nem são) imaginativos o suficiente para enxergá-las e se relacionar
com elas. Azar deles!
Boa
leitura!
O
Editor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário