Ato de coragem
* Por Pedro J. Bondaczuk
O
escritor Fortunato Pasqualine afirmou, com muita propriedade, se não
me falha a memória em um artigo de jornal (mas não me recordo qual
deles), que "a verdadeira vida é um ato dialogal, é uma
comunhão. É ser e expressar-se juntos para sempre". Esse
"diálogo", destaque-se, nem precisa ser oral, cara a cara,
"vis-a-vis", como diriam os franceses. Não é necessário
sequer que seja uma "conversa", no sentido em que
interpretamos usualmente esse exercício de comunicação
interpessoal.
Basta
que conheçamos a obra, a vida e o pensamento de determinada pessoa,
com a qual comunguemos e nos identifiquemos, seja por qual meio for,
e o "milagre" já acontece. Sua experiência, caso nos
atraia e impressione, incorpora-se, sem que mesmo venhamos a nos dar
conta, definitivamente, à nossa. Torna-se nosso patrimônio pessoal.
Influencia-nos e muitas vezes até determina os rumos que iremos
tomar na vida, quer os pessoais, quer os profissionais ou, quem sabe,
os literários, (se tivermos talento e sorte para isso), não
importa.
Foi
o que aconteceu, por exemplo, comigo, em relação ao jornalista e
escritor piracicabano Sud Menucci, nascido em 1892 (portanto, muito
distante de pertencer à minha geração) e que morreu na cidade de
São Paulo em 1948, depois de uma carreira das mais limpas, honestas,
vitoriosas e produtivas em nossa imprensa diária.
A
primeira vez que ouvi alguém falar dessa personalidade foi em 1949,
quando do transcurso do primeiro aniversário da sua morte. Lembro-me
que se tratou de um comentário, bastante trivial, feito pelo meu
pai, leitor compulsivo de jornais, que havia lido muitos textos desse
notável redator, do qual se tornara profundo admirador, a propósito
das solenidades levadas a efeito na Capital paulista, alusivas ao seu
falecimento. Ele falou qualquer coisa elogiosa a respeito da justiça
que então se fazia com esse jornalista, ressaltando, à guisa de
comentário, a curta memória do brasileiro em relação às pessoas
que não merecem ser esquecidas, pelo exemplo que dão e por suas
grandes realizações, mas que quase sempre o são.
Não
sei porque, esse nome se impregnou profundamente na minha memória.
Provavelmente, por ser bastante incomum: Sud Menucci! Nunca antes, e
nunca depois, soube que mais alguém se chamasse dessa forma. Tem
sonoridade e até uma certa poesia. Recende à Itália. É
italianíssimo, sem dúvida. O que mais, afinal, senão isso,
poderia impressionar a criança de seis anos de idade que eu era
nessa ocasião? Claro que nunca havia lido texto seu até então,
embora meu pai o lesse e às vezes tecesse comentários favoráveis.
O
tempo passou, a infância perdeu-se em algum lugar ignorado do tempo,
foi embora, qual nuvem de fumaça, rapidamente, sem que sequer me
desse conta, e não pensei mais no caso. Nem no jornalista, e muito
menos nas circunstâncias em que ouvira falar a seu respeito. Em
1961, já adolescente, cursando o colegial, preparando-me para
enfrentar o Vestibular de Medicina, o grande sonho de minha vida, um
belo dia passei por determinada rua, procurando o endereço de um
amigo, com o qual combinara de estudar Física para uma prova,
quando, olhando para a placa, lá estava o nome que tanto me havia
impressionado na infância: Sud Menucci! Acendeu-se uma luz em meu
cérebro.
Jovem,
sumamente curioso, resolvi pesquisar de quem se tratava. Fui à
Biblioteca Municipal de São Paulo e logo descobri que o referido
jornalista havia trabalhado no "O Estado de São Paulo",
entre 1925 e 1931, tendo sido redator e crítico literário desse
tradicional jornal. Não me contentei com essas poucas e esparsas
referências. Resolvi (nem sei porque, mas creio que o motivo foi
mais do que mera curiosidade), ir mais a fundo em minhas pesquisas.
Li vários dos seus textos e achei-os profundos, elegantes, atrativos
e altamente elucidativos.
Como na
época não havia o recurso do xerox, copiei muitas das suas crônicas
e avaliações de livros. Descobri que ele havia fundado a revista
"Arlequim" e saí à cata dessa publicação, com sucesso.
Posteriormente, descobri seu primeiro livro, "Alma
Contemporânea", datado de 1918, em um sebo de São Paulo e
resolvi adquiri-lo. Não tardou para que Sud Menucci deixasse de ser
para mim apenas um nome, mencionado de passagem por meu pai, ou a
mera denominação de uma rua da Capital (depois fiquei sabendo que
há uma cidade do interior paulista com esse nome).
O
tempo passou, ingressei no curso de Medicina, mas por falta de
recursos financeiros, fui forçado a abandoná-lo no segundo ano.
Decepção! Frustração! Amargura! E agora? Que profissão seguiria?
Afinal, precisaria trabalhar para garantir meu sustento se quisesse,
como queria, me casar e constituir família.
Hoje
não tenho dúvidas de que o fascínio por Sud Menucci, que surgiu do
nada, por acaso, influenciou minha decisão de abraçar o jornalismo,
do qual estou aposentado, mas exercendo ativamente. Afinal, uma vez
jornalista, sempre jornalista! Secretamente, bem no fundo da minha
alma, acalento uma pretensão (um tanto maluca, é verdade, meio
infantil, talvez megalomaníaca e sumamente improvável). A de que,
um dia, o nome "Bondaczuk" desperte a mesma curiosidade em
alguma criança que Sud Menucci despertou em mim, e determine também
a sua trajetória de vida.
Ilusão?
Quem sabe?!! Afinal, como garante o escritor David Mortensen,
"comunicar-se plenamente com outro ser humano, uma vez que isto
propicia o risco de causar sua própria mudança, é desempenhar o
talvez mais corajoso de todos os atos humanos". E essa coragem,
essa permanente e exaustiva comunicação com os semelhantes,
tornou-se, em minha vida, muito mais do que profissão: é, hoje, ato
tão trivial (mas vital), como comer, beber ou respirar…
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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