O
escritor dos extremos
*Por
Pedro J. Bondaczuk
A
literatura russa, por uma série de razões (inclusive pessoais, mas,
principalmente, por apreciar livros e autores de reconhecida
qualidade) sempre me fascinou. Li os mais destacados autores nascidos
naquele vasto país, como Tolstói, Puchkin, Gorki, Gogol, Mayakovski
e tantos e tantos outros e, de cada um deles, extraí preciosas
lições, sobretudo acerca do comportamento humano. Aprecio-os todos
com o mesmo entusiasmo. Mas há um que se destaca em minhas
preferências por sua genialidade. Trata-se de Fiodor Mikhailovitch
Dostoievski.
Sua
obra, entre outras virtudes, fornece preciosos subsídios ao
estudioso de ciências políticas para que entenda o por quê da
Revolução Bolchevique de 1917 e a formação da União Soviética.
Mostra a desagregação da sociedade russa no período que a
antecedeu, sob o regime czarista, não raro louvado por quem não
conhece nada sobre esse período tenso e violento da história da
Rússia.
Dostoievski
mostra, com realismo e crueza, as injustiças e aberrações de uma
elite alienada e que se julgava destinatária de um “direito
divino” sobre as chamadas “massas”, mergulhadas na miséria e
na ignorância. Analisa, ainda, o cristianismo sob um prisma
realista, utilizado não como mera religião que prega a
solidariedade e o perdão, mas como odioso instrumento de dominação.
Os
livros de Dostoievski vão além desses aspectos sociais. Alcançam a
alma das pessoas. Estuda sua psicologia, suas motivações.
Apresentam tanto personagens que agem com supremo desprendimento
(como o de dar a vida por um ideal), quanto os que se revelam
“canalhas dos canalhas”, tomados por fúria homicida, insana e
destrutiva. Identifica e confronta os dois instintos básicos do
homem, o erótico e o tânico. O construtivo e o destrutivo.
Entre
os personagens desse gênio da literatura mundial contam-se santos e
criminosos, iluminados e possessos, homens de extrema honestidade e
canalhas dos mais cruéis; sábios e idiotas. Para exemplificar,
podemos citar o príncipe Muisdhkin, vivendo sua imbecil utopia. Ou
as mulheres desvairadas pelo orgulho vazio e fútil, de várias de
suas histórias. Ou de meninas como Mariocha, sacrificada ao tédio
do possesso Stavroguin. Ou os nihilistas que, embora buscassem
destruir as sociedades organizadas, para que cada indivíduo
conduzisse, sem interferências externas seu destino, sonhavam com
uma Rússia poderosa, soberana, livre e igualitária.
Da
galeria de monstros e santos, criada por Dostoievski, fica a
impressão que o escritor queria nos passar sua crença de que o ser
humano apenas atinge o auge da nobreza e da grandeza quando expande
os limites da humanidade na direção do anjo. Ou, em alguns casos,
do demônio.
Chocante,
por exemplo, é a “psicologia” do estudante Raskholnikov, que se
torna assassino em “Crime e castigo”, quando chacina, a
machadadas, a indefesa e avarenta velhinha, sua senhoria. O jovem
cometeu essa atrocidade para se apoderar das economias da vítima.
Seu pretexto era que, em tirando o dinheiro que a anciã economizara,
ao longo dos anos, esses recursos seriam melhor utilizados por ele.
Afinal, ele era um intelectual, com brilhante futuro pela frente e
possibilidades de agir no sentido de tornar o mundo melhor. Já a
anciã... Não passava de uma “ninguém”.
Afrânio
Coutinho compara Dostoievski a Michelângelo Buonarroti. Argumenta
que ambos deram, à figura humana, proporções aterradoras. Muitos
entendem (sem nenhum fundamento científico), que a epilepsia do
escritor, antes de ser um mal (e, evidentemente era), tratava-se de
uma “vantagem “ sua, de detonadora das alucinações que o
levavam a criar personagens tão trágicos (e, simultaneamente, tão
grandiosos), mediante alguma suposta “misteriosa tempestade
elétrica cerebral”. Claro que discordo disso.
Aliás,
os gregos antigos classificavam a epilepsia, que os intrigava
bastante, de “a divina moléstia”!. E Dostoievski, em vez de
lamentar, tinha fascínio por suas crises epilépticas. A impressão
que fica, caso a doença tenha, de fato, influído na sua literatura,
é que esta talvez o levasse a penetrar recessos da alma inacessíveis
e interditos às pessoas não acometidas por este mal.
Vladimir
Nabokov, no livro “Lectures on Russian Literature”, no estudo
sobre “Crime e castigo”, comenta: “Além disso tudo, as
personagens de Dostoievski têm um outro traço marcante: através de
todo o romance, elas não se desenvolvem como personalidades. Nós as
obtemos todas completas no início da história e assim elas
permanecem sem quaisquer mudanças consideráveis, embora seus
ambientes possam se alterar e as coisas mais extraordinárias possam
lhes acontecer”.
Mikhail
Bakhtin discorda de Nabokov. Explica a criação dos personagens de
Dostoievski pelo que denomina de polifonia: “O herói tem
competência ideológica e independência, é interpretado como um
autor de sua concepção filosófica própria e plena e não como
objeto de visão artística final do autor”.
Nicolas
Berdiaev fez um estudo profundo sobre Dostoievski e sua obra e chegou
à seguinte conclusão: “Tão grande é a importância de
Dostoievski, que havê-lo produzido é em si mesmo justificação
suficiente para a existência do povo russo no mundo; e ele
testemunhará em favor de seus compatriotas no julgamento final das
nações”. Voltarei, certamente, ao tema.
*
Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de
Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do
Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções,
foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no
Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios
políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas),
“Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da
Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º
aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio
de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53,
página 54. Blog “O Escrevinhador” –
http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
Sua crônica ficou fascinante, e foi apenas um começo de conversa.
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