Pedro
Custódio, um filósofo da Mangueira na UERJ
*
Por José Ribamar Bessa Freire
“Tristeza não tem fim. Felicidade sim” (Tom Jobim).
-
Eu detesto alegria, porque a alegria não deixa a gente pensar, ao
contrário da tristeza, que provoca a reflexão.
Quem
falou assim foi Pedro Antônio Custódio, 58 anos, residente no morro
da Mangueira, no Rio. Estávamos na sua salinha, no 12º andar da
Uerj, por onde sempre passo bem cedo para um dedo de prosa, antes da
aula das 7 hs no curso de pedagogia. Foi logo depois do carnaval. Eu
havia lhe contado, crente que estava abafando, que na disciplina
Movimentos Sociais e Educação - uma das quatro que ministro nesse
semestre - iria projetar o desfile da Escola de Samba Paraiso de
Tuiuti sobre a escravidão. Pedro desmontou meu entusiasmo com um
piparote provocativo:
-
Professor, me desculpe, mas escola de samba não conscientiza
ninguém. É jogada da mídia. Amanhã todo mundo já esqueceu. Que
consciência é essa que conta a escravidão - minha avó foi
escravizada - com gente cantando de alegria, dançando, seminus,
fantasiados, desfilando em carros coloridos e iluminados? O que me
aborrece no carnaval é essa felicidade exibida que camufla a
realidade. O brasileiro já vem programado com um microchip para
ostentar alegria. Repare que ninguém mostra selfie da
família chorando. Uma pose, um sorriso, um clique e pronto. A
alegria é uma fantasia.
Paulo
Prado, no livro “O Retrato do Brasil” publicado há quase cem
anos, sustenta que a cultura brasileira é atravessada pela
melancolia – eu disse, mas Oswald de Andrade considera que “a
alegria é a prova dos nove”, o teste para checar se “tupi
or not tupi”.
Falei do Darcy Ribeiro, para quem “o povo brasileiro é mais alegre
porque mais sofrido”. Pedro, que anotou os autores, deu um
xeque-mate:
-
Imagine, professor, as vítimas da guerra da Síria ou do genocídio
nazista fazendo sambinha e desfilando alegremente gritando:
-
Olha o holocausto aí, gente?
Senhora
Tristeza
Esse
é o Pedro que trabalha na Uerj há quatro anos, como prestador de
serviços, na manutenção de computadores, dando suporte técnico ao
setor de áudio e vídeo e, como seu homônimo, porteiro do céu, é
ele quem guarda as chaves para abrir as salas de aula da Faculdade de
Educação. De quebra, troca figurinhas com alguns professores e com
eles filosofa.
-
A felicidade me incomoda, porque é só um momento fugaz. Ela me tira
do meu estado permanente de tristeza e me leva para algo que dura
pouquíssimo tempo. Como posso festejar o sofrimento alheio? Quem
disse que a gente veio ao mundo para ser feliz? A tristeza é produto
da vida, está dentro de mim, enquanto a alegria a gente tem de
buscar lá fora. Já dizia Salomão: “É melhor ir à casa de quem
está de luto do que visitar quem está feliz”.
Lembrei
que essas ideias já foram desenvolvida por Miguel de Unamuno,
especialmente em “O Sentimento Trágico da Vida”, que discute o
sentido da existência humana, a angústia, o embate entre o
pensamento científico e o religioso.
Pedro,
que é músico como seu irmão José Luís Custódio, o Russo, mestre
de bateria da Mangueira por mais de dez anos, apela para Tom Jobim:
- A
felicidade é como a pluma que o vento vai levando pelo ar. Voa tão
leve, mas tem a vida breve.
Contra
ataco com o Samba da Benção de Vinicius:
- É
melhor ser alegre que ser triste, alegria é a melhor coisa que
existe.
Pedro
não se dá por vencido e lembra outra estrofe do mesmo samba:
- Mas
pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza
(...) Porque o samba é a tristeza que balança. E a tristeza
tem sempre uma esperança”.
-
Acontece – eu digo – que Caetano reconhece que “a
tristeza é senhora”,
mas revela que “cantando
eu mando a tristeza embora”.
Precisamos cantar, Pedro!
-
A canção – ele retruca – está comprometida com a arte e não
necessariamente com a verdade. Não digo que gosto de ser triste,
apenas observo que a gente convive permanentemente com a tristeza,
mesmo os que fingem o contrário.
Indago,
curioso, sobre sua história de vida, que ele me autoriza a publicar.
Tu
és Pedro
Seus
pais vieram de Lagoa Dourada (MG) ainda crianças, para o Rio, onde
se casaram, residindo a vida toda na Mangueira. Pedro nasceu na Casa
da Mãe Pobre, no Rocha, Zona Norte do Rio, em 28 de novembro de
1959, num parto complicado devido a um chute dado pelo pai na barriga
da mãe gestante. Foi retirado a fórceps, quando ainda não
queria nascer, com duas pás alongadas de metal. Sua avó
materna, escrava, engravidou de um português. Por isso Mestre Russo,
um dos cinco irmãos – são 3 homens e duas mulheres - nasceu
louro.
A
mãe, merendeira numa escola, sofria de depressão crônica e era
espancada regularmente pelo pai alcoólatra, montador de ladrilhos
numa fábrica de cerâmica. Os filhos também faziam fila para
apanhar. Pedro escapou de grandes surras, porque desde criancinha
teve grave problema na garganta, causador de uma febre reumática,
que lhe tirou a mobilidade e provocou uma disfunção cardíaca.
Operou do coração aos 8 anos no Hospital Alemão em Botafogo.
-
Minha mãe me levava desde pequeno para a escola onde trabalhava e
ali eu ficava o dia todo, de 7 às 18 hrs. Paralítico, permanecia no
pátio, sentado quieto, espreitando e contemplando o mundo ao meu
redor, registrando tudo com os olhos, com os ouvidos e, depois,
desenhando, porque aprendi a desenhar. A limitação física não
tirou minha liberdade de fazer escolhas. Por exercitar a observação,
me tornei um observador.
Ele
diz que não acredita na genética como formadora do caráter e da
personalidade e que não acredita na raça como determinante da
cultura. Raça não tem nada a ver com o comportamento das pessoas,
afirma, como se tivesse lido Lévi-Strauss, mas é apenas o resultado
de suas observações do mundo.
Pedro
fez curso de desenho técnico no SENAI e trabalhou 22 anos no setor
comercial da Bagaggio como estoquista, vendedor e até gerente, além
de atuar na portaria da Cruz Vermelha. Casou com dona Nadir com quem
está junto há 35 anos e por quem se declara eternamente apaixonado.
“Foi essa paixão que me salvou” – confessa. “O
casamento não é algo que acontece, mas vai acontecendo. Um cede
ali, outro aqui e assim vai casando, se encaixando. Recomeça outra
vida. Quer continuar sendo quem você é? Então não case”.
O
casal teve dois filhos, Helena, hoje com 31 anos, professora e Lotar,
27 anos, formado em administração, além de dois netos, uma de 10 e
outro de 6 anos. “Com eles demonstro minha afetividade, dando
atenção, cuidado, carinho, falo baixo, não grito nunca. Mas não
sei demonstrar afetividade com o toque físico, só através da fala.
Não sou muito de abraçar, só abraço minha mulher” – ele diz.
Duvidando
da verdade
Homem
de sete instrumentos, Pedro toca violão e compõe músicas
evangélicas. “Compor canções é saber esperar, é melodiar um
sentimento, simplificar o que ainda não existe. Mas a arte também
nos ensina a mentir, maquiar, se esconder” – ele diz, revelando
que se afastou das igrejas “porque elas comercializam, entram no
mercado e muitas vezes atrapalham e destroem quem quer conhecer Deus,
com um repertório repetitivo, padronizado, cansativo”.
-
Gosto de duvidar das “verdades” estabelecidas, não para
destruir, mas como caminho para descobrir coisas novas. Gosto de
mexer na estrutura que o outro defende, gosto de ir lá na raiz e
cortar. Por causa disso, o professor José Carlos Lima disse que a
minha linha filosófica é a da desconstrução, conceito do Derrida,
autor que eu desconhecia.
Depois
disso, Pedro Custódio que estudou até o penúltimo ano do 2º.
Grau, foi lá no Google buscar Jacques Derrida e autores que vão
surgindo nas conversas com outros professores, entre os quais Sammy
William Lopes.
Esse
é o nosso Pedro, o filósofo da Mangueira na Uerj, inteligência
privilegiada, que dá bolo em desembargador e dá nó em pingo
d’água. Por isso, o convidei para dar uma aula comigo.
Desconstruiu tudo e saiu ovacionado pelos alunos.
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Jornalista e historiador.
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