Nosso
irmão, o bugre
*
Por Urda Alice Klueger
Santa
Catarina, via de regra, é um Estado todo bonitinho, cheio de cidades
arrumadinhas e bem cuidadas,
não importa muito a etnia que as formou no princípio. Aqui pelo meu
Vale do Itajaí o pessoal gosta mesmo de caprichar: jardins bem
cuidados rodeando casas quase sempre caprichosamente pintadas,
centenas de donas de casa a usar uma preciosíssima água que deve se
acabar em duas décadas para lavar e lavar calçadas que poderiam ser
apenas varridas – uma beleza, todo o mundo cuidando da estética e
da manutenção de uma terra que foi roubada dos... índios! É bem
isso aí, gente, toda esta terra do Vale do Itajaí, bem como toda
esta terra do continente americano já tinha dono antes que europeus
e africanos aqui chegassem (há que se perdoarem os africanos, que
para cá foram trazidos à força.). E tem gente demais, por aí,
dizendo e sentindo barbaridades a respeito do nosso espoliado índio,
mais conhecido pelo termo bugre, que tem conotação bem pejorativa.
Eu
tenho um amigo índio chamado Edvino. Ele é Xokleng, mas tem os
olhos azuis, coisa lá de uns antepassados alemães que ele teve, mas
dos quais não faz conta. Decerto são daqueles alemães que
furunfaram lá com as antepassadas do Edvino e depois foram para casa
cheios de si, a defender ideias de raça pura, essas bobagens assim.
O fato é que Edvino é um Xokleng de olhos azuis. Num sábado aí
para trás tirei um tempinho para andar pela cidade, e sentei-me numa
pracinha onde Edvino justamente estava a vender bonito artesanato.
Daí a pouco se senta ao meu lado uma típica dona de casa
blumenauense, daquelas que gastam nossa preciosa água com as
calçadas, e entabulamos alguma conversa. Disse para ela:
Se
uma dúzia de cobras venenosas tivesse aparecido naquele momento na
praça e avançado na mulher ela não teria dado maior pulo. Ficou
apavorada, o coração espremido de medo, a dizer-me:
-
Aquele? Meu Deus, um selvagem! – e jogou-se embora quase correndo,
tamanho seu medo.
Daí
eu pergunto: quem é, ou quem foi o selvagem? O índio, antigo dono
das nossas terras, era (e é) tão Homo sapiens sapiens quanto
qualquer um de nós que lê jornal, e o que nós fizemos com ele?
Aconselho que vocês leiam um livro chamado “Índios e brancos no
Sul do Brasil”, de autoria de um nosso grande antropólogo,
internacionalmente respeitado, Sílvio Coelho dos Santos. Sílvio
passou toda a sua vida ligada ao povo Xokleng e conhece como ninguém
a sua história. Vou transcrever aqui um pedacinho do livro – é um
pedacinho de uma entrevista que o Sílvio fez lá pela década de 60
com um importante fazendeiro catarinense, e está à página 87 do
livro. Depois de contar muitas atrocidades sobre como se efetuava o
genocídio desse povo a quem roubamos as terras, ele conta o
pedacinho seguinte:
“...conheci
um indivíduo chamado Júlio Ramos, que participava dessas tropas.
Contou-me que uma vez, durante um ataque, uma meninota de mais ou
menos 14 anos tentava fugir do acampamento. Ele a alcançou,
agarrando-a pelos cabelos, e desceu-lhe o facão. Este penetrou pelos
ombros descendo até o estômago, cortando que nem bananeira(...)”
Duvido
que você consiga almoçar bem hoje, se se lembrar de tal fato na
hora da comida. E este é apenas um minúsculo pedacinho da História
verdadeira. E dificilmente alguém de nós não descende de invasores
que fizeram ou mandaram fazer coisa parecida. E ainda está cheio de
gente levando susto quando vê índio, pensando na velha fórmula do
“selvagem”. Quem é o selvagem? Eles ou nós?
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela
UFPR, autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de
2016), entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e
“No tempo das tangerinas” (12 edições).
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