Pirulito
e o desembargador: molestando crianças
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Ai
do homem que escandalizar uma criança. Se a tua mão direita te
serve de escândalo, corta-a e lança-a fora de ti; porque
é melhor que se perca um dos teus membros, do que todo o teu corpo
ir para o inferno (Mateus, V: 29-30).
Ninguém
desconfiava que o velho Pirulito molestava sexualmente sua própria
filha, a Tininha, que tinha 5 ou 6 anos. Afinal, ele era insuspeito:
puxava a reza em família antes e depois de cada refeição, era
zelador do Apostolado da Oração - Seção Masculina e toda primeira
sexta-feira do mês arrastava seu filho, o Pirulitinho para, juntos,
assistirem a missa dos homens às 5 hs da manhã. Comungava,
contrito, com a medalha do Sagrado Coração de Jesus no peito e a
fita vermelha em volta do pescoço, cantando:
-
Levantai-vos, soldados de Cri-iiiisto. Eia avante nas sendas da
glória.
Por
isso, o bairro de Aparecida ficou perplexo quando sua cunhada, dona
Neném, esbaforida, saiu correndo pelos becos gritando:
-
Eu vi! Eu vi! Eu vi o pirulito do Pirulito. Ele estava na rede com a
filha fazendo imoralidade.
Ninguém
o conhecia pelo nome de João. Durante anos, percorreu as ruas da
cidade vendendo pirulitos enrolados em papel colorido enfiados em um
tabuleiro furado. Fazia ponto na Praça da Saudade, esperando as
crianças saírem da escola. O apelido ficou mesmo depois que, já
viúvo, arrumou um emprego de lavador de garrafas e empacotador, com
carteira assinada, na Fábrica Miranda Correa, que fabricava a
cerveja amazonense XPTO. Lá era tido como trabalhador assíduo e
responsável.
Por
isso, foi difícil admitir a denúncia da dona Neném. Na época,
Pirulito, católico praticante, homem de fé, soldado de Cristo e
funcionário exemplar desqualificou a cunhada, jurando que era doida,
que estava inventando, despeitada porque ele, viúvo, se recusara a
casar com ela. Em quem acreditar? O bairro se dividiu. Na ocasião,
ninguém ouviu a Tininha.
Esqueletos
da família
Muitos
anos depois, durante caminhada no calçadão da Ponta Negra, Tininha
já adulta confirmaria tudo ao desinformado irmão que chorou
copiosamente, culpando-se por não ter podido protegê-la do pai
libidinoso. Ela contou que o abuso começara em 1950 e caqueirada
dentro da fábrica de cerveja no Plano Inclinado, réplica de um
imponente castelo da Baviera com seis andares, torre e escada de
caracol de 200 degraus, construído em 1910, no esplendor da
borracha, às margens do igarapé de São Raimundo, próximo ao
terminal do bonde. Para lá ela foi levada pelo pai num domingo
festivo.
-
Lá de cima dá pra ver toda a cidade – convidou Pirulito, que
trabalhava no térreo.
Subiram
e lá abusou da menina, pela primeira vez, prometendo dar-lhe rótulos
da XPTO com a figura da águia, além de pinchas - tampinhas da
garrafa com o mapa do Amazonas e seus rios. O abuso se repetiu muitas
vezes e só parou graças aos gritos de dona Neném. Mas a polícia
arquivou a queixa como era de se esperar em uma sociedade
extremamente machista. A Cervejaria Miranda Correa foi vendida para a
Brahma, Pirulito morreu impune, dona Neném, com fama de doida, subiu
pela última vez o Boulevard Amazonas, Pirulitinho e a irmã ficaram
com seus traumas nesse vale de lágrimas.
A
doença do Pirulito - que se existe inferno deve estar lá – é
mais frequente do que se imagina, embora “os esqueletos guardados
no armário” fiquem escondidos pelo “muro de pedra entre os
membros das famílias” que, como no poema de Drummond, nem sempre
permitem “escalpelar os mortos”. O caso é real, mudei o
cenário para não expor os dois irmãos protagonistas que estão
vivos. Ele veio à tona, quando na última quarta-feira (21) um
escândalo similar explodiu na mídia do Amazonas, envolvendo um avô
e sua neta.
O
mal pela raiz
A
advogada Luciana Pires denunciou ao Ministério Público (MP/AM) o
desembargador aposentado Rafael de Araújo Romano, 73, seu sogro, de
ter abusado sexualmente da própria neta desde os 7 anos, quando
morava na casa dele, até recentemente durante as visitas que o avô
lhe fazia, uma das últimas em 2016, em Fortaleza (CE), onde ela
reside agora com a mãe. Por medo, a menina, que tem agora 15
anos, teria silenciado. No dia 8 de fevereiro último, em visita a
uma amiga em um hospital, decidiu pedir socorro à mãe.
Contou
que o avô tocava nas suas partes íntimas, de forma demorada.
Percebeu o abuso quando estava sentada em uma cadeira de balanço
dentro do quarto dele, que começou a alisar suas pernas até à
calcinha. “Esse homem chegava a machucar os seios da minha filha,
além de arranhá-la com a barba. Algumas vezes cheia de marcas, mas
nunca imaginaríamos que fosse abuso” – disse a mãe.
Acontece
que Rafael Romano, como o Pirulito, é insuspeito. Entrou para a
magistratura em 1977 e durante três décadas foi - ironicamente? -
titular do Juizado da Infância e da Juventude no Amazonas e relator
da “Operação Estocolmo”, em 2012, que investigava uma rede de
exploração sexual de menores no Amazonas, com envolvimento de
políticos, empresários, parlamentares e do prefeito de Coari, Adail
Pinheiro, que foi por ele condenado a mais de 10 anos de prisão por
pedofilia.
O
pai da menor, Rafael Romano Jr., também advogado, inicialmente
acreditou na filha e entrou em parafuso, indignado com o assédio,
segundo os “prints” da conversa mantida com Luciana e por ela
divulgado. Mas depois publicou nota repudiando a acusação. A mãe,
que levou a menina a um psiquiatra antes de fazer a denúncia, já
foi tachada de “insana” e de “vingativa” por estar se
divorciando do filho do desembargador, que jura inocência. Em quem
acreditar?
Linchamento
A
família está sofrendo com o linchamento nas redes sociais, onde
sempre aparecem "justiceiros” exigindo condenação. O
acusado, no entanto, merece o benefício da dúvida, especialmente
porque o Brasil não esqueceu a acusação improcedente feita em 1994
aos proprietários da Escola Base em São Paulo massacrados pela
mídia sensacionalista. A acusação não tinha qualquer fundamento,
a Rede Globo e outras emissoras foram condenadas a pagar indenização,
mas a escola foi depredada e várias vidas já estavam destruídas.
Manifestar
dúvidas não significa desqualificar a denúncia, que parece
consistente, mas exigir investigação séria e rigorosa para apurar
o ocorrido, o que nem sempre acontece nesses casos, devido à
natureza dos fatos, ao machismo e ao corporativismo do Judiciário.
Se o desembargador, porém, for inocente – ele pode ser inocente –
sua inocência não será comprovada com insultos tachando a mãe
como “doida e vingativa”. Supondo que seja assim, quem foi
que disse que loucos rancorosos são necessariamente mentirosos?
De qualquer forma, o depoimento da menina merece ser levado em conta.
Mas
se for verdade a acusação – pode ser verdade - o desembargador,
como o Pirulito, seria um doente, o que não o exime de
responsabilidade e, portanto, de punição, na medida em que teria
consciência de seu estado patológico. Nesse caso, melhor seria ter
seguido o conselho do evangelista Mateus, cortando o mal pela raiz
para não escandalizar a criança, a quem ele tinha a tríplice
obrigação de proteger: como adulto, como juiz e como avô.
*
Jornalista
e historiador.
Meu asco contra crimes sexuais fazem de mim uma pessoa insana, que passa por cima da constituição, e pede a pena máxima. As provas desse tipo de crime não são materiais, depois do tempo passado, são mentais. Como comprovar? Sem provas, sem pena?
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