Quando a mente se desarranja
Os
desarranjos mentais, tragédia para quem sofre (e para suas famílias
também), constituem-se em temas recorrentes, muito explorados em
literatura. Há tempos este é um dos meus assuntos preferidos, pelos
mistérios que envolve e pelo tanto de preconceito que o cerca. Claro
que não estou sozinho nessa fascinação. Embora seja de se deplorar
a situação das vítimas desses males, não deixa de ser
morbidamente fascinante para quem a observa de fora. Centenas,
milhares de poemas, crônicas, ensaios, contos e romances já foram
escritos (e certamente outro tanto ainda o será) sobre o que se
chama, de forma generalizada, de “loucura”. Esses desarranjos são
vários, não um só, e vão desde uma simples neurose, à profunda
psicose. Desde uma depressão, que abala a vida de quem a sofre, mas
não a alheia da realidade, à esquizofrenia. Mas todos são tratados
praticamente da mesma maneira.
O
doente mental é, desde eras muito remotas, vítima de incompreensão
e de preconceito. Antigamente (mas não tanto assim), passava por
terríveis torturas físicas (além das psíquicas inerentes à sua
doença). O vulgo entendia que essas pessoas estavam “possuídas
por demônios”. O pobre infeliz que “não batia bem da cachola”
era acorrentado, levava tremendas surras, pois se acreditava que
desta forma os supostos espíritos malignos eram passivos de expulsão
e não raro morria nas mãos da turba ignara, vítima desses
maus-tratos e agressões. É caso de se perguntar: quem era o louco
na história, a vítima ou seus algozes?
Em
pleno século XXI, esses doentes mentais continuam sendo tratados, em
muitos lugares, de forma tão desumana, indigna e até vil como
antigamente. São encerrados em manicômios sombrios, sórdidos e
insalubres, dopados com tranquilizantes que não só os acalmam mas
os tornam praticamente “vegetais”, recebem choques na cabeça ou
têm partes do cérebro extirpadas (as lobotomias) etc. e isso mesmo
em casos que não comportam internações e que poderiam e deveriam
ser tratados ambulatorialmente, e no seio das respectivas famílias.
Estas, todavia... os repudiam. Querem se livrar de qualquer jeito
deles.
Um
dos psiquiatras que mais combateram esses procedimentos absurdos e
desumanos para com os doentes mentais – rotulados, todos,
genericamente, de “loucos” – foi o escocês Dr. Ronald David
Laing, uma das maiores sumidades na matéria do século XX e que
morreu em 1989. Ele propugnou, ao longo de toda a carreira médica,
que o tratamento mais eficaz para esses pacientes, notadamente para
os esquizofrênicos, não deveria ser, jamais, a hospitalização e
nem o eletrochoque, mas apenas a comunicação. Mas com uma condição:
que essa fosse estabelecida, apenas, quando o doente depositasse
plena confiança em seu médico.
Laing
escreveu: “Derrubar os muros dos manicômios, lutar contra o feroz
isolamento dos doentes, preparar um diálogo possível com os
esquizofrênicos, deixá-los ir ao fundo de seus delírios,
arriscando-se a que se percam completamente ou voltem curados,
recusar soluções efêmeras e opressivas, como os calmantes e os
eletrochoques”. Muitos especialistas acataram sua forma de
tratamento, advinda de profunda observação, e o índice de cura foi
muito alto. Outros... Persistiram (e boa parte persiste),
teimosamente, na forma cruel e desumana de tratar os doentes. O
médico escocês era, principalmente, especializado em esquizofrenia,
doença que definiu assim: “A pessoa que de repente não quer mais
corresponder à imagem que sua família ou o meio social lhe impingiu
refugia-se no irreal, no imaginário, torna-se um esquizofrênico”.
“Ora”,
dirá o leitor, “se o critério for este, então todo o mundo tem
um pouco de esquizofrenia”. Quem sabe se não tem, de fato?! O Dr.
Laing acrescenta, à guisa de explicação: “Sanidade e loucura são
estabelecidos pelo grau de dissintonia existente entre duas ou mais
pessoas. O problema está no contexto onde se fazem as coisas: uma
mulher que reza fervorosamente no interior de uma igreja pareceria
absurda se tivesse comportamento idêntico no meio da rua”.
Sabem o que é mais curioso? É
a origem da palavra “louco”. Ela é uma corruptela exatamente do
seu oposto, ou seja, de “lógico”. E, de fato, há alguma
“lógica” na insanidade mental, posto que distorcida e doentia.
Há quem considere, por exemplo, a loucura o antônimo de
“racionalidade”. Não é. O Dr. Isaías Pessotti, professor da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, explica porque: “A
racionalidade não é a perfeição. Pode ser até a loucura, quando
a serviço da violência do instinto”.
Já
o filósofo francês, Michel Foucault, no livro “História da
loucura”, sustenta a tese que toda pessoa imaginativa tem
componentes característicos do desarranjo mental. Exagero, claro. E
o Dr. Pessotti explica porque: “Se pessoas rotuladas como loucas
foram grandes criadores, trata-se de pessoas muito ativas que, por
acidente, ficaram loucas. Ou se trata de pessoas que na situação
acrítica de marginalização (como loucas) revelam uma criatividade
que a vida ‘normal’ impedia de se ver ou de se manifestar. Mas a
loucura não é libertação do espírito. Muito ao contrário. É a
escravidão do pensamento”.
Por
falar em loucura, um dos livros que mais me impressionaram a respeito
é o romance “Onze minutes”, de Paulo Coelho, best-seller
mundial, que logo sera transformado em filme. Acho, como Pessotti,
uma estupidez a glamurização dos desarranjos mentais, como se se
tratasse de alguma virtude, de aptidão ou de cacoete e não de
doença. Como acho estúpido, também, decretar a morte em vida de
quem passa por esse drama, como se não tivesse cura. Alguns casos
não têm mesmo, mas boa parte é curável
com a terapia simples e humana do Dr. Ronald David Laing: a do amor.
“Uma palavra pode matar uma pessoa. Uma simples palavra
colocada no lugar certo, no momento certo, pode mudar toda uma vida”,
observa o ilustre psiquiatra escocês. E pode até curar alguns dos
mais sérios desarranjos mentais. O que não podemos, sadios
mentalmente ou doentes, é nos isolar e nos trancar dentro de nós
mesmos. Porquanto, como o Dr. Laing resume, “pode-se dizer que a
loucura é você não ter nenhum amigo”.
Boa
leitura!
O
Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
O sofrimento mental é muito mais do que isso. É ingênuo chamar genericamente os fármacos psiquiátricos de "calmantes". O esquizofrênico catatônico fica imóvel como uma estátua. Ele não precisa de "calmantes". Quanto ao respeito, é preciso existir sempre, especialmente junto ao doente mental.Um surto psiquiátrico, quando a pessoa atenta contra a sua própria vida e a dos demais, não tem como não ser tratado em reclusão. Nesse caso não há escolha. Bom tema.
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