Alô,
alô Realengo!
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Não
tinha amigos, não batia papo nem contava piada, nunca namorou,
jamais lhe deram um cheiro no cangote ou alisaram sua mão, nunca
transou, não torcia por time algum, nunca foi ao Maracanã, não
xingou juiz de ladrão, de sua garganta jamais saiu um grito
apaixonado de gol, não desfilou em qualquer bloco de carnaval.
Passava o tempo na internet, em jogos eletrônicos, mas nunca recebeu
um aviso no facebook solicitando: “me adicione como amigo”.Seu
perfil social no orkut tinha "zero amigos".
Esse
filme a gente já viu. Ele é americano. Surge, agora, uma produção
brasileira, um compacto que mistura roteiros das várias versões
importadas dos Estados Unidos. Aqui o cenário foi uma escola em
Realengo, no subúrbio carioca. O personagem principal invadiu a
escola, executou friamente doze alunos e feriu mais de dez. Foram
importados dos Estados Unidos seu nome – Wellington - e os dois
apelidos - Sherman e
depois Suingue, botados
pelos colegas.
O
primeiro foi inspirado na figura nerd de
Chuck Sherman, “the
Sherminator”, do
filme American
Pie. O
segundo, no seu jeito desajeitado de caminhar, causado por uma perna
ligeiramente menor que a outra, que produz um balanço, um ‘suingue’,
no dizer debochado dos colegas. Na versão americana de Ohio, o aluno
H. Coon, que entrou na escola e atirou em quatro colegas antes de se
suicidar, também
mancava e ficou conhecido pelo apelido de Deixa-que-eu-chuto.
A
história de Wellington começa a ser contada, aos fragmentos, por
colegas, vizinhos e irmãos adotivos entrevistados pela mídia, com
registros esparsos sobre seu nascimento e sua passagem pelo mundo da
família, da escola e do trabalho. Aliás, ele não nasceu, foi
excluído do ventre de sua mãe - uma moradora de rua com problemas
mentais.
Precisa
de carinho
Na
escola, usava calças com cós acima da cintura e meias até os
joelhos. A menina mais bonita da turma se jogava em cima dele,
fingindo assediá-lo, só pra sacanear. Ganhou fama de homossexual.
Não reagia às agressões, à semelhança do estudante de origem sul
coreana, nos Estados Unidos, Cho Seung-hui, que matou 32 pessoas na
Universidade de Virginia e deixou uma carta dizendo ter sido
discriminado como um bicho: “eu
morro como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas
fracas e indefesas”.
Seguindo
o modelo americano, Wellington também escreveu uma carta, “rogando
para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte”. Nela,
deixou um testamento, legando sua casa para alguma instituição
encarregada de cuidar dos animais abandonados, “pois
os animais são seres muito desprezados e precisam muito mais
de proteção e carinho do que os seres humanos que possuem a
vantagem de poder se comunicar”.
Wellington
não tinha o poder de se comunicar. “Mal
ouvíamos a voz dele, vivia no mundo dele –
contou uma vizinha. “Era
muito calado, muito fechado e a galera pegava muito no pé dele, mas
não a ponto de ele fazer isso –
disse seu ex-colega Bruno Linhares, 23 anos, se referindo ao
massacre. Precisava
de proteção e carinho?
Outros
colegas admitiram que o rapaz foi vítima de ‘bullying’ na
Escola Municipal Tasso da Silveira, onde estudou de 1999 a 2002,
quando sofreu constantes intimidações. “Além
de tudo, ele ainda tirava notas baixas” –
completou Bruno. No 8º ano, ficou em recuperação em quase todas as
matérias.
“A
gente chorou muito pensando que Wellington matou aquelas 12 crianças
em represália pelo que aconteceu com ele quando nós estudávamos
juntos” –
contou Thiago da Cruz, outro ex-colega, que usou o
adjetivo assustador para
se referir ao bullying e
à chacota a que Wellington foi submetido. Em entrevista à Folha,
reconheceu que não suspeitava do dano que cometeram e acrescentou
chorando: “Não
era para ninguém ter pago por uma coisa que nós fizemos”.
“Ele
era tímido e calado” –
confirmou ao Globo o
gerente da fábrica de alimentos Rica, sediada em Jacarepaguá,
adiantando que Wellington permaneceu silencioso o tempotodo
numa dinâmica de grupo realizada na firma, onde trabalhou durante
dois anos como auxiliar de almoxarifado. A indústria, que abate
170.000 aves por dia e aloja cerca de 46 milhões de pintos,
considerou “baixa” a produtividade dele.
Por
isso, Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, foi excluído do
trabalho, demitido em agosto de 2010. Ficou desempregado. Depois da
morte da mãe adotiva, passou a morar sozinho mergulhado na mais
extrema solidão. Não foi apurado ainda com que recursos ele
sobreviveu nos últimos meses.
Nessa
quinta feira, 7 de abril, vestido de preto e com duas armas, como o
menino de Ohio, Wellington voltou ao local do crime - a escola onde
estudou - para acabar com aquilo que o molestara. Incorporou o
apelido de “the
Sherminator”, encurralou
e executou 12 crianças, feriu outras 13, quase todas mulheres, num
banho de
sangue
nunca visto numa escola brasileira. Depois, ferido, se suicidou com
um tiro na boca.
Escola
de merda
Errou
o alvo. Atirou no que viu e matou o que não viu. Ceifou os sonhos de
Larissa, 14 anos, que queria ser modelo; de Bianca, a gêmea de 13
anos, que gostava de navegar na internet; de Mariana, 12 anos, o xodó
da família, que adorava tirar fotografias; de Géssica, 15 anos, uma
menina alegre que havia feito planos de estudar na Marinha; de Igor
que gostava de futebol, torcia pelo Flamengo e jogava na Escolinha do
Vasco. E de tantas outras adolescentes sonhadoras.
“Ela
morreu naquela escola de merda”gritava
dentro do hospital dona Suely, mãe de Géssica. Familiares e amigos
ficaram imersos no desespero, na revolta, na dor e na perplexidade.
Como foi possível isso acontecer? Podíamos ter evitado? Como?
- “Poderia
ter sido um de nós, um de nossos filhos” –
escreveu uma leitora do Globo, sem
atentar que foram doze de nós, doze de nossos filhos. Por isso é
que o Brasil inteiro se sentiu ferido com os tiros disparados por
Wellington, que atingiu a todos nós, embora com intensidade
diferente.
O
presidente do Senado, José Sarney, sempre ‘brilhante’, sugeriu
que “o
governo deve, a partir desse episódio, reforçar a segurança dentro
das escolas brasileiras e até mesmo incluir no currículo um item
chamado segurança”. Outras
sugestões foram feitas: instalação de câmeras, detectores de
metal, catracas, guaritas, porteiros armados. Por que não canhões?
Ou fossos ao redor como nos castelos feudais? Isolar a escola da
comunidade onde está encravada é alguma garantia de segurança?
A
prefeitura do Rio chegou a iniciar, em novembro do ano passado, a
contratação de porteiros para as escolas, mas houve denúncias de
que as vagas estavam sendo loteadasatravés
de indicação política, naquele modelo que o Sarney gosta, usa e
abusa. Suspenderam as contratações e abriram uma CPI.
O
governador Sérgio Cabral, ainda desorientado, diagnosticou o
assassino como “psicopata”,
como um “animal”, reforçando
as palavras de Sarney para quem Wellington é “um
fanático”, “um
fronteiriço, possesso – esta é a palavra – entre a loucura e a
maldade”. O
diagnóstico dos dois configura ‘exercício ilegal da profissão’.
Quem
produziu Wellington? Por que um espetáculo tão macabro, no qual
todos somos perdedores? Se não procurarmos responder essa pergunta,
outros Wellingtons surgirão, tirando o gostinho dos Bolsonaros por
seu linchamento, já que se suicidou. O diabo é que estamos
todos perplexos, confusos. Quem diz que sabe o porquê do acontecido,
sinalizando um único fator como a causa de tudo, comete um erro. Uma
certeza nós temos: nem o presidente do Senado nem o governador sabem
o que dizem.
No
meio de tanta dor, não temos ainda a grandeza sequer de dizer:
"Descansa em paz, Wellington".
Desconfio
que além das pessoas tocadas de perto pela tragédia, precisamos
todos, os 180 milhões de brasileiros, de assistência psicológica.
Enquanto isso, só nos resta fazer como os familiares das crianças
assassinadas e os moradores
de Realengo que nesse sábado deram um enorme abraço na Escola Tasso
da Silveira.
Alô,
Alô, Realengo, aquele abraço solidário e aquele cheiro no cangote
que Wellington nunca recebeu, levando consigo três fiapos de
humanidade: o beijo na testa da professora de literatura, a
preocupação com os animais desamparados e a retirada de um aluno de
sua mira a quem disse com simpatia: “Fica frio, gordinho, que eu
não vou te matar”.
P.S.
Três links:
1) Eu
odeio a escola
- http://www.taquiprati.com.br/cronica/116-eu-odeio-a-escola
2)
A escola de Cho
.
http://www.taquiprati.com.br/cronica/141-a-escola-de-cho
3)
Educando para o
P.S.
2 - CONEXÃO MUÇULMANA - (Postado no dia 11 de abril, segunda-feira,
às 22 hs): O Globo divulgou hoje uma segunda carta encontrada
pela policia na casa de Wellington, de sua autoria: "Muitas
vezes aconteceu comigo de ser agredido por um grupo e todos os que
estavam por perto debochavam, se divertiam com as humilhações que
eu sofria, sem se importar com meus sentimentos".
Um
ex-colega de Wellington confirmou e contou ao Globo dois casos: "Uma
vez, pelo menos três garotos de outra turma enfiaram a cabeça dele
no vaso sanitário. Lembro que o vimos molhado, mas ele foi embora.
De outra vez, vi jogarem ele de cabeça para baixo, dentro de uma
lata de lixo, e tamparem. Ele teve que balançar a lata, derrubá-la,
e só depois conseguiu sair, no meio de todo mundo. Ele não revidou
nem respondeu a ninguém".(pg 10)
A
manchete da primeira página, no entanto, vai em sentido
contrário: "POLICIA
INVESTIGA SE ATIRADOR PLANEJOU MASSACRE COM GRUPO".
A Polícia e o Globo estão buscando a conexão muçulmana e um
tal Abdul que poderia ser o cúmplice. Penso que nem a Polícia
nem o Globo acreditam nessa pista delirante, que desvia a
atenção dos crimes cometidos nas escolas dos Estados Unidos,
expressamente mencionadas na carta de Wellington como vítimas
do bullying. O jornal dá um tratamento à matéria
como se Wellington estivesse vivo e pudesse tirar alguma vantagem
disso: "Wellington
Oliveira tenta usar o bullying, a perseguição que diz ter sofrido
na escola para justificar o crime".
PS.3.
- (postado em 23 de abril de 2011). - SEPULTAMENTO NA SEXTA-FEIRA DA
PAIXÃO.. Nessa sexta-feira da paixão, dia 22 de abril, foi
sepultado o corpo de Wellington Menezes de Oliveira no Cemitério do
Caju. Como nenhum parente reclamou seu corpo, ele foi enterrado numa
cova rasa. Nenhum parente esteve no enterro, o corpo não foi
reclamado por ninguém nessas duas semanas em que permaneceu no
Instituto Médico Legal. Além dos dois coveiros,
apenas o motorista da Santa Casa presenciou o enterro. O coveiro
Leandro Silva, de 25 anos, segundo O GLOBO, disse: Ele
não merecia nem ser sepultado".
*
Jornalista
e historiador.
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