A
poesia de Ñasaindy Barrett, filha da eterna Soledad
* Por
Urariano Mota
Todo
o mundo agora pode conhecer o livro “Do que foi pra ser Agora”, a
poesia que a ditadura brasileira gerou contra a sua vontade. Os
cristãos diriam que é uma bênção o lançamento do livro pela
Editora Mondrongo, do editor e poeta Gustavo Felicíssimo. Mas eu
digo que é poesia e verdade, no sentido de Goethe. E nesse caso, de
resistência e vida também. Entendam por quê.
A
poetisa Ñasaindy Barrett de Araújo é a única filha de Soledad
Barrett, a guerreira de quatro povos assassinada no Recife em 1973.
Ñasaindy nasceu em Cuba, por força da militância política dos
pais,. Soledad Barrett Viedma, paraguaia, e José Maria Ferreira de
Araújo, brasileiro. Ambos foram assassinados pela repressão no
Brasil. Ele em 1970, em São Paulo depois de preso e torturado.
Soledad Barrett em 1973, no Recife, delatada pelo companheiro,
o militante infiltrado Cabo Anselmo.
Ñasaindy
chegou ao Brasil em 1980, com 11 anos de idade. E viveu entre o
choque das diferenças culturais e políticas, mais as dificuldades
encontradas por não ter documentos. “Eu era órfã, estrangeira,
rebelde e fantasma”, contou um dia. Compreendam. O curto
recorte biográfico é necessário, porque a poesia é mais que o
poema, sempre. A vida foi presenteada a Ñasaindy como um destino
inescapável, como um fruto complexo da sua genética, personalidade
e formação. Pois Ñasaindy Barrett de Araújo é a filha do tempo,
dos anos mais difíceis da ditadura brasileira. E de tal modo, que
a poetisa se perguntar numa poética irônica, numa pergunta que é
também de todo jovem hoje no Brasil:
“E
o chip, dentro de nós.
Quem
foi que implantou?
O
que me faz sonhar?
O
que me faz chorar?”
Assim
posto, chegamos à hora da poesia pelos poemas, somente pelos poemas,
se tal arbitrariedade é possível. Mas tentemos a proeza. Tento e
fico a meio caminho, porque a poesia de Ñasaindy nos fala:
“Os
homens ainda amam
mesmo
na angústia e na dor”.
Não
é verdade? Pois de quanta dor, impureza e anormalidade se faz o mais
límpido lírio dos campos? E se queremos ficar no reino do poético
porque poético só poético, acompanhem a poesia linda, madura e
fina que há nestes versos
“Percorre
induzida a borboleta seu percurso.
Encontra-se
pousando em uma hortênsia azul”.
E
não resisto, ao fim, de comparar uma sensibilidade poética que
descende em linha direta do que li antes, quando pesquisava sobre a
heroína de quatro povos, que recriei em meu livro “Soledad no
Recife”. Vejam este documento, uma estrofe dos últimos versos
escritos por Soledad Barrett:
“Mãe,
não sofras se não volto
me encontrarás em cada moça do povo
deste povo, daquele, daquele outro
do mais próximo, do mais longínquo
talvez cruze os mares, as montanhas
os cárceres, os céus
mas, Mãe, eu te asseguro,
que, sim, me encontrarás!“
me encontrarás em cada moça do povo
deste povo, daquele, daquele outro
do mais próximo, do mais longínquo
talvez cruze os mares, as montanhas
os cárceres, os céus
mas, Mãe, eu te asseguro,
que, sim, me encontrarás!“
A
primeira vez em que li esse belo e último poema de Soledad Barrett,
escrevi: “Agora vocês entendem a estética que é uma ética
e uma profecia em um só poema. A vida que veio depois mostrou
esse poema como uma canção de despedida”. Fui precipitado. A
canção de Soledad, que se tornou impossível de ser desenvolvida em
1973, ressurge na poesia do livro da sua filha. De modo particular,
podemos dizer que existe uma alma semelhante à estética de Soledad
Barrett na poesia de Ñãsaindy Barrett de Araújo. Olhem estes
versos do livro e o que suas linhas lembram:
“Entre
todas as gentes,
sei
que tenho um irmão.
E
é porque sinto suas dores,
que
mesmo sem ter olhos alegres,
mesmo
sem ver a verdade ausente
sei
que a luz está presente. “
Enfim,
“Do que foi pra ser agora” é mais que um livro. Ele é um
acontecimento de importância social, uma ordem da vida e
renascimento. Como tão bem está escrito em uma de suas páginas: “A
chuva caiu tão bela quanto foi a sua espera.” Assim é o livro da
filha de Soledad Barrett. Na poesia, a autora alcançou o
próprio nome: Ñasaindy Barrett de Araújo, poeta. Sinto que os
longos dias de exílio e desencontros deram a Ñasaindy este
presente: “Do que foi pra ser agora”. Em pré-lançamento da
Editora
Mondrongo http://www.mondrongo.com.br/index2.php?pg=noticia&id=144
Toda
a gente do Brasil merece conhecer.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa,
membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance
“Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici,
“Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário
amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O
Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Soledad, uma mártir que deixou a poesia hereditária.Estranho, mas é verdade.
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