Martha
no Recife
* Por
Clóvis Campêlo
Comecemos
pelo começo, por onde se deve sempre começar.
No
Marco Zero, onde se inicia o mundo, visitaremos a obra de Cícero
Dias. Em obediência à rosa dos ventos, contemplaremos a cidade se
expandindo em círculos concêntricos em busca da sua própria
identidade e em busca dos poetas pernambucanos representados no
Circuito da Poesia.
Ali
mesmo, ao lado, reverenciaremos Naná Vasconcelos, com sua escultura
e o seu berimbau, que providencialmente estabelece uma ligação
indissolúvel entre as culturas da Bahia e de Pernambuco.
Na
Rua da Moeda, saudaremos Chico Science, uma antena fincada no mangue
onde mais uma vez Pernambuco falou para o mundo, e a sua revolução
de beats e bites. Afinal, sempre fomos caranguejos com cérebros.
Às
margens do Rio Capibaribe, sob a sombra generosa do seu chapéu de
poeta, auscultaremos Ascenso Ferreira em busca de diagnosticar e
identificar os ruídos modernistas que sempre o acometeram. O poeta,
que nunca teve nada de besta, escolheu um lugar importante e
simbólico para plantar a sua escultura. Ali, com certeza, sempre
coube e sempre caberá um verbo transitivo direto.
Na
ponte Maurício de Nassau, sem pagar nenhum pedágio à poesia,
saudaremos o poeta Joaquim Cardozo, o engenheiro do poema, sempre
atento aos entardeceres da cidade e aos transeuntes constantes e
passantes. Talvez até, escutemos histórias sobre um tal boi voador.
Afinal, o tempo decorrido sempre mistura memórias e imaginações.
Seguiremos
adiante, passando pela Rua 1º de Março e chegando à Praça da
Independência, onde Carlos Pena Filho, elegantemente trajado, entre
putas, loucos e lúmpens, aguarda a hora de acender os seus poema no
Bar Savoy. Seu olhar sereno contempla diuturnamente a Matriz de Santo
Antônio, em torno da qual a cidade cresceu e apodreceu. Tudo no seu
devido tempo.
Incólumes,
atravessaremos a Avenida Guararapes, onde a vida ainda pulsa, e
saudaremos Capiba na outra margem do Capibaribe. De costas para o
rio, Capiba continua se guardando para quando o carnaval chegar. Nos
bolsos de pedras, partituras e novas canções escondem-se contidas
pela dureza da realidade implacável. Afinal, em determinados
momentos, só nos cabe a inércia.
Como
o Recife se fez sobre pontes e overdrives, mais uma vez cruzaremos o
rio, com a naturalidade de um cão atravessando uma rua, e na
paisagem úmida daquele logradouro, após contemplarmos os casarões
malassombrados da Rua da Aurora, encontraremos a secura dos poemas de
João Cabral de Melo Neto, que, sentado à beira do caminho, não se
cansa de contemplar o Recife da sua época. Naquele trecho do rio,
onde um dia o escritor Suassuna tomou banho nu e onde os botos
costumavam encantar os habitantes da cidade nos primórdios do século
passado, ainda existe poesia suficiente para paralisar o poeta e seus
admiradores.
Então
já teremos traçado um longo trajeto, o que, para uma moça poetisa
da Bahia, talvez seja uma overdose. O cheiro doce do rio,
misturando-se com a brisa salobra do mar, poderá lhe causar
vertigens.
Entretanto,
nada disso importará desde que as emoções sobrevivam.
*
Poeta, jornalista e radialista.
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