O
templo da humanidade
* Por
Ivan Lins
Através
do livro de Teixeira Mendes estava feita a minha adesão ao
Positivismo, do qual, até então, nada conhecia, somente sabendo, de
modo vago, pelo que ouvia em minha família, ter sido João Pinheiro
seu adepto. Não contente com a leitura de tudo que meu pai possuía
em torno de Augusto Comte e de sua doutrina, fui com ele, num domingo
de maio de 1922, ao Templo da Humanidade erigido por Miguel Lemos e
Teixeira Mendes no Rio de Janeiro. Íamos ouvir uma exposição da
doutrina de Comte a ser feita, ao meio-dia, pelo Dr. Bagueira Leal.
O
corpo do templo é formado por vasta nave retangular e um recinto em
semicírculo, onde se acha o altar da Humanidade, constituído por
grande quadro em cujo entablamento, acompanhando-lhe a curvatura
superior, se lê, gravado em caracteres verdes, o verso de Dante:
"Vergine
madre, figlia del tuo figlio."
Sobre
uma coluna destaca-se, ao pé do quadro, o busto de Augusto Comte
cercado por outro verso da Divina Comédia:
"Tu
duca, tu signore e tu maestro!"
Na
frente do busto está a tribuna de forma poligonal, ostentando no
alto, em letras verdes, ainda um verso do florentino:
"Vien
dietro a me, e lascia dir le genti."
Num
dos lados do semicírculo se vê um quadro com Dante e Beatriz, e, ao
longo da nave, abertos simetricamente nas paredes, quatorze nichos
abrigam bustos policromos. Destes, treze evocam os principais
promotores do progresso humano, que dão os seus nomes aos meses do
Calendário Histórico instituído por Augusto Comte. Do lado
direito, Moisés recorda a teocracia inicial; em seguida, Homero
personifica os primórdios da poesia; depois Aristóteles - a
filosofia dos antigos; Arquimedes a sua ciência; César a
civilização militar; São Paulo o Catolicismo e, finalmente, Carlos
Magno a civilização feudal. No lado esquerdo é glorificado o
evolver da Humanidade nos tempos modernos, e o primeiro a aparecer é
Dante encarnando a poesia épica; depois Gutenberg - a indústria;
Shakespeare o drama; Descartes a filosofia; Frederico II a política;
Bichat a ciência, e, por fim, no décimo quarto nicho, Heloísa
relembra a mulher santificada pelo amor.
O
oficiante iniciou a cerimônia com a saudação de São Bernardo à
Virgem no derradeiro canto do Paraíso. E, assim, em meu primeiro
contato com o Templo da Humanidade, deparei com Dante nada menos de
sete vezes. Em seguida, aprofundando o estudo do Positivismo e
tomando conhecimento do sistema de leituras aconselhado por Comte,
saltou a meus olhos a Divina Comédia - "a incomparável epopeia
em que até aqui reside o melhor título da arte humana", nas
palavras do filósofo.
Envergando,
com apuro, um paletó preto, colarinho duro e gravata preta, com a
barba bem escanhoada, era o Dr. Bagueira Leal uma figura que se
impunha pela dignidade e finura do trato. Era, além disto, um bom
conferencista. Sem arroubos oratórios, a sua exposição prendia o
auditório pelo seu espírito sintético e pela clareza com que
apresentava os conceitos científicos, filosóficos, sociais e morais
do Positivismo. Passei a ouvi-lo religiosamente aos domingos, muitas
vezes acompanhado de meu pai, e nas chamadas festas sociolátricas
instituídas pela Igreja Positivista. As suas preleções
apresentavam um começo, um meio e um desfecho sempre harmoniosamente
dosados, sendo grande a sua capacidade didática.
Considerando,
desde então, o Positivismo um elemento primacial de minha
felicidade, pondo fim à dúvida, à descrença e ao pessimismo, em
que me deixara a perda do Catolicismo, julguei-me no dever moral de
propagá-lo tanto quanto estivesse em mim, porque assim poderia
beneficiar outros que passassem pela dolorosa crise moral e
intelectual do que acabara de sair.
Pus-me, então, a ler os
seis volumes do Curso de Filosofia Positiva e todas as obras de Comte
e de seus discípulos biógrafos e comentadores, sem me deixar
impressionar com as dissensões que os afastassem, num ou noutro
ponto, da doutrina de seu Mestre. E li também com a sofreguidão de
quem, atormentado pela sede do deserto, encontra água pura num
oásis, as quatro seções da Biblioteca planejada por Comte: Poesia
ou Literatura, Ciência, História e Síntese ou Filosofia.
Tem
a seleção de obras organizada pelo filósofo o objetivo de sugerir
e não o de excluir leituras. Partindo do princípio cartesiano de
ser a leitura uma conversação com os autores, tomou, como norma,
escolher, em cada gênero, os maiores escritores e as suas obras
unanimemente consideradas mais perfeitas. É assim que a parte
literária de sua seleção começa com Homero, Ésquilo, Sófocles,
Aristófanes, Píndaro e Teócrito entre os gregos antigos, seguidos
de Plauto, Terêncio, Virgílio, Horácio, Lucano, Ovídio, Tibulo e
Juvenal, entre os romanos.
Como
amostra típica da Idade Média, indicou os Fabliaux recolhidos,
no século XVIII, por Legrand d'Aussi, seguidos de Dante, Petrarca,
Ariosto, Tasso, Metastásio, Alfieri e Manzoni. Além do teatro
espanhol escolhido, abrangendo as melhores peças de Lope de Vega,
Calderón de La Barca, Tirso de Molina e demais dramaturgos
castelhanos, incluiu o Dom Quixote e as Novelas exemplares de
Cervantes, seguido de Corneille, Molière, Racine, Voltaire, La
Fontaine, Le Sage e Chateaubriand. Dos ingleses, figuram Shakespeare,
Milton, De Foe, Goldsmith, Fielding, Walter Scott e Byron,
completados por Goethe como representante da Alemanha, e as Mil e uma
noites, os populares contos árabes.
As
obras do setor científico constituíam um roteiro provisório,
porque a ciência está sempre em desenvolvimento, e incluíam o que
então havia de melhor sobre as ciências básicas - matemática,
astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral. Na parte
da História, estão arrolados os mais importantes autores do gênero
desde Heródoto, Tucídides, Plutarco, César, Tácito, D'Ávila,
Commines, Colline, Gibbon, Robertson, Hallam, Hume, Bossuet, Abade
Claude Fleury, Abade Barthélemy, até Voltaire, Winchkelmann,
Mignet, Cook e Chardin.
Finalmente, na seção de filosofia,
além da Bíblia e do Corão, encontram-se A política e a moral
de Aristóteles, A cidade de Deus, As confissões e o Comentário
do sermão da montanha por Santo Agostinho, o Tratado do amor de Deus
de São Bernardo, a Imitação de Cristo por Tomás de Kempis, o
Discurso sobre a História Universal por Bossuet, os Ensaios
filosóficos de Hume, a História da Astronomia por Adam Smith, o
Quadro dos progressos do espírito humano, por Condorcet, a Política
extraída das Sagradas Escrituras por Bossuet, o Tratado do Papa de
Joseph de Maistre, a Interpretação da natureza e a Dissertação
sobre os cegos e surdos de Diderot, o Discurso do método de
Descartes, o Novum
organum de
Bacon, as Relações do físico e do moral por Cabanis, as Cartas
sobre os animais de Jorge Leroy, o Tratado sobre as funções do
cérebro por Gall, os Pensamentos de Cícero, Epicteto, Marco
Aurélio, Pascal e Vauvenargues, as Considerações sobre os costumes
por Duclos, entre muitos outros livros de igual valia, que constituem
as mais altas manifestações do espírito humano na poesia, na
ciência, na história e na filosofia.
Consagrando-me,
com entusiasmo, à leitura, desde menino, a biblioteca aconselhada
por Augusto Comte, por mim avidamente procurada e adquirida nos
sebos, principalmente do velho José Matos e do meu querido Carlos
Ribeiro, foi para mim um maná do céu. A fim de aproveitá-la
devidamente muito contribuiu a cultura humanística que adquirira ao
ler os clássicos romanos nas aulas com meu pai, que também me
orientara no trato do que apresentavam de mais característico os
escritores do Brasil, Portugal, Espanha, França, Itália e
Inglaterra.
Na Igreja Positivista frequentei, além das
conferências dominicais do Dr. Bagueira Leal, um esplêndido curso
de Filosofia Primeira, ministrado por Sílvio Vieira Souto, e uns
comentários à Síntese subjetiva por Luis Bueno Horta Barbosa,
antigo catedrático por concurso do Ginásio de Campinas.
Travei
então conhecimento com Teixeira Mendes e com vários jovens
positivistas, dos quais me tornei amigo: Paulo e Trajano de Berredo
Carneiro, Rodolfo Paula Lopes, filho do catedrático de Biologia do
Colégio Pedro II, Rubem Descartes de Garcia Paula, Benjamin
Barradas, Alberto Pizarro Jacobina, Jair Porto, Henrique Baptista da
Silva Oliveira, Vinicius de Berredo, Carlos Palhano de Jesus e Luís
Hildebrando Horta Barbosa.
Em
1924 Paulo Carneiro nos deu, no pavimento térreo da residência do
Professor Rodolfo Paula Lopes, na Rua Silveira Martins, um excelente
curso de química sob a orientação positivista, ao qual assistimos
os dois Paula Lopes, pai e filho, João Francisco de Sousa, Rubens
Lopes e José de Albuquerque, todos três estudantes de medicina,
Alberto Pizarro Jacobina, Benjamin Floriano Barradas, Francisco
Baiardo Horta Barbosa, Luis Hildebrando Horta Barbosa e eu.
Manifestação
típica do meu estado de espírito, nessa quadra, é o discurso que,
em 24 de novembro de 1925, proferi na Sala Daniel Encontre do Templo
da Humanidade, ao encerrar-se o curso de Filosofia Primeira ali
ministrado por Sílvio Vieira Souto a um grupo de moças e rapazes
positivistas. Desse discurso extraio alguns tópicos característicos:
-
A Religião da Humanidade é a síntese suprema em que se resume o
labor das gerações que nos precederam, termo radioso alcançado por
nossa espécie, depois de haver passado pelo Fetichismo, pelo
Politeísmo e pelo Monoteísmo. Em cada uma dessas fases, que formam
a evolução social preparatória, foi feita a cultura progressiva
dos três atributos de nossa natureza: o sentimento, a inteligência
e a atividade. A soma de esforços representada por essas três fases
é imensa. Os seus obreiros, escalados através dos séculos, estão
unidos pelo desejo comum de melhorar nossa espécie. Reconheçamo-lhes
os serviços, venerando-lhes a memória e inspirando-nos em seu
exemplo para levar a cabo a evolução social definitiva. O que eles
prepararam e buscaram, com tamanho afã, pode tornar-se uma realidade
graças ao Positivismo. A felicidade humana, que se idealizara de
tantos modos nas utopias celestes e terrestres, construídas por
numerosas almas nobres, há de ser obtida através dessa doutrina tão
bela quanto verdadeira. Ela renova, melhorando-o, o exercício do
sentimento, do pensamento e da atividade. Ao antigo egoísmo das
razões teológicas substitui motivos sociais inteiramente
desinteressados. Em vez do regime arbitrário e confuso das vontades
sobrenaturais, introduz a exatidão das leis demonstráveis na
explicação da Ordem Universal. Na política substitui o dever ao
direito, a indústria à guerra e estabelece, entre os sentimentos,
as ideias e os atos uma convergência jamais sonhada. É, portanto, a
mais profunda revolução e a mais universal a que jamais haja
aspirado a Humanidade. Fundar a harmonia geral da espécie, ao
consolidar a Família, a Pátria, e a Igreja, elementos eternos da
existência social, é alicerçar suas relações necessárias em
bases mais seguras. Aperfeiçoando, por toda parte, a Ordem
Universal, sobretudo humana, a Religião Final não concorre menos
para o progresso: desenvolve, em todos os sentidos, a natureza do
homem e dirige todos os seus esforços para a conquista dos tesouros
espirituais: o belo, o bom e o verdadeiro. Libertando, em nome da
ciência e da moral, de degradante miséria a imensa classe daqueles
que concorrem para produzir toda a riqueza, oferece aos proletários
as bases de uma família condigna. Respeitando a ordem, assegura a
liberdade e separa os dois grandes poderes, teórico e prático.
Reconstituindo o poder espiritual, o eleva à sua completa
generalidade, tornando-o suscetível de estender-se à espécie
inteira.
E,
mais adiante, prosseguia eu: "Congreguemo-nos, pois, meus
amigos, para apressarmos o advento dessa era em que por toda parte o
homem, cidadão da Terra, estenderá ao homem a mão fraterna, a fim
de enriquecer a Pátria comum, fecundando e abençoando essa mesma
Terra de que depende a existência geral, melhorando-a e
embelezando-a para transformá-la enfim no Éden sonhado nos
primórdios da Humanidade. Para tal é imprescindível que a ação
dos positivistas sobre os seus contemporâneos se exerça através do
exemplo de um procedimento ilibado. Persuasão, demonstração,
devotamento, eis os meios que devemos empregar para o prevalecimento
da religião universal. Desprendamo-nos dos interesses pessoais que
nos aferram ao presente e nos dirijamos com firmeza rumo ao futuro.
Vivamos, em espírito, com os nossos descendentes para fazê-los
felizes. Que o amor da Humanidade inflame as nossas almas e guie os
nossos passos."
Como
se vê dos extratos aqui transcritos, o encerramento do curso de
Filosofia Primeira, em novembro de 1925, proficientemente ministrado
por Sílvio Vieira Souto na Igreja Positivista, propiciou-me calorosa
profissão de fé. Ao lê-la cinquenta anos mais tarde, penso que os
jovens de hoje podem considerá-la ingênua e utópica. Hão de
concordar, porém, que, sem entusiasmo, nada se consegue de grande e
de nobre no mundo. Se as duas guerras mundiais de nosso século
exacerbaram o egotismo de nossa espécie, levando os homens,
embrutecidos pelo terror do amanhã, a se degradarem em gozos fáceis
e desordenados, se romperam o pequeno verniz de moralidade da
civilização dominante na Belle
Époque,
não deixa de ser verdadeiro que grande parte da humanidade continua
em busca de um ideal que a eleve e lhe restitua a consciência de sua
própria dignidade.
(Fragmento
de Memórias, Revista Brasileira, fase VI, nº 3, 1977.)
*
Jornalista, professor, pensador, ensaísta e conferencista, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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