sábado, 6 de maio de 2017

Oportunidade de reforma agrária nos processos de desenvolvimento do tipo brasileiro



* Por Cândido Mendes

Em processos como o brasileiro, as relações entre a agricultura e a indústria vão evolver em duas fases distintas. Na primeira, da qual se acha em vias de sair o país, registra-se uma carência acentuada da oferta do setor agrícola de subsistência, e a perda de sua posição no rateio do produto nacional. Deve-se o fato à expansão da indústria e à necessidade de transferir-se maciçamente, para o sustento desse esforço, os resultados do setor agrícola de exportação. O desequilíbrio se torna assim um risco forçoso do crescimento econômico nesta etapa, e de todo utópica seria a possibilidade de conjurá-lo mediante uma reforma agrária que se preocupasse tão-só com um mero redistributivismo da terra.

No curso do processo de mudança de estrutura, nessas condições, a industrialização pressionará sobre a demanda de gêneros sem, paralelamente, assegurar à agricultura recursos adequados à ocupação produtiva do solo. Um novo fator de desajuste decorrerá dos efeitos de todos os aparelhos de intermediação e comercialização que insularam o produtor direto numa situação de pauperismo frente à perspectiva geral de crescimento dos outros setores do país. Perdurará nesta situação enquanto não forem conjurados os pontos de estrangulamento e assegurado o serviço de transportes, abastecimento e armazenagem, requeridos para a efetiva integração da base agrícola à economia de mercado do país. Nesta fase a atividade agrícola sofre inevitável espoliação, diante da prosperidade do país. É forçada a participar de um complexo inflacionário sem poder adaptar-se a ele, com a mesma flexibilidade das demais atividades econômicas. E este pauperismo forçado concentra-se no produtor direto, pela rigidez da parte que lhe cabe no rateio da renda agrícola, dada a acumulação de sobrepreços que sofrem os valores de mercado pela ação dos intermediários.


Numa segunda etapa do desenvolvimento, realizados os trabalhos de infra-estrutura e amadurecido o processo industrial, a correção do desequilíbrio inicial entre os setores primário e o secundário seria condição sine qua non para que não entrasse em colapso a economia nacional. Dele dependeria a estabilização do mercado interno, de estrutura nitidamente urbana, que a indústria criou no país.


Como foi aludido, o problema crucial dessa fase residiria no alargamento da base alimentar de subsistência, exigida por aquele mercado. Já se poderia prever então, para dedicar a tarefa, uma alocação mais flexível de recursos, tendo-se em vista a expansão da renda nacional ocorrida no primeiro período, bem como o preenchimento das tarefas de maior prioridade, ligadas aos investimentos de infra-estrutura, e à sustentação do crescimento industrial do país. Reforçaria a expansão do setor agrícola, nesta etapa, a possibilidade de ser reaplicada nos cinturões de alimentação urbana, a mão-de-obra que abandona as culturas de exportação, à proporção que se for acentuando o seu declínio estrutural.


Nessas condições, a exploração de um divórcio entre desenvolvimento e expansão agrícola, que dá lugar ao clamor por uma reforma agrária isolada, desligada do planejamento, reflete estritamente o imobilismo relativo do setor primário, na primeira etapa colonial. O que na verdade se verifica é que, na fase referida, o ataque aos problemas do setor agrário se confunde com a criação das condições de infra-estrutura, principalmente em transportes, que são requisitos para que se integre o mercado interno nacional. As "metas agrícolas" ficariam necessariamente a reboque do setor industrial mais dinâmico, e geralmente na dependência da atividade promocional do Estado. Elas se cingiriam a esforços destinados mais a evitar a ampliação do desnível entre a produtividade industrial e a agrícola, do que propriamente a compensá-lo. De modo geral, na etapa referida a sua expansão se faria de forma parasitária, ou como subproduto do próprio crescimento industrial. Resultariam os seus recursos de subsídios obtidos como compensação ao confisco da receita cambial necessária à industrialização do país.


No cálculo da oportunidade econômica destes investimentos, passariam eles a depender não de um empreendimento autônomo, mas de sua obtenção como derivados da expansão industrial que atingisse a uma determinada escala de investimento.


Não seria assim de se estranhar que, pela ausência de dinamismo espontâneo, fossem as metas agrícolas as mais atrasadas no campo de iniciativas como a construção de silos e armazéns, o estabelecimento da indústria de fertilizantes, ou a obtenção de implementos e maquinaria rurais.


Se, desligada do desenvolvimento, a reforma agrária clássica representaria uma contradição para seus objetivos, pressupostas as condições de infra-estrutura para a mudança do aparelho econômico colonial ela se transformaria, desde logo, num poderoso instrumento do programa emancipatório. Ao contrário do que pretendem os teóricos ortodoxos, que condicionam toda "reforma" à melhoria direta da produtividade, da educação e do crédito rurais, a mudança do estatuto jurídico da terra apresenta impactos positivos imediatos sobre o desenvolvimento, assim que os mercados urbanos se podem integrar, pelos trabalhos citados de infra-estrutura, aos setores agrícolas de que passa a depender a sua base alimentar. É por isso que o redistributivismo tem o seu lugar, de pronto, no processo de desenvolvimento, quanto às propriedades entregues à agricultura de subsistência, em regime de desperdício ou de espoliação. E mais se acentua este impacto benéfico se a reorganização dos latifúndios for acompanhada da outorga aos exploradores diretos da terra de um mínimo de técnicas de cultura e de educação que melhorem o rendimento da terra, mesmo à margem de incrementos substanciais de capital, em maquinaria ou outros benefícios.


Vale dizer que a oportunidade da reforma, dentro de urna política de desenvolvimento, já ao fim da sua primeira etapa, está condicionada à diversidade de destino econômico apresentado pela propriedade agrícola. Nos latifúndios de exportação, o redistributivismo importaria em sério risco econômico, já que poderia importar numa substituição de culturas, trocando-se a lavoura de exportação pela economia de roçados. Regrediria, sensivelmente, em conseqüência, a oferta para a produção exportável, e golpear-se-ia assim a receita cambial do país. Inteiramente distinta seria a situação do latifúndio dedicado à agricultura de subsistência ou economicamente inaproveitado. A sua entrega imediata ao explorador direto se transformaria num fator de estímulo à produção, ao desatrelar a propriedade de uma cadeia de prestações geralmente feudais, e ao permitir a superação do insulamento que tornava o posseiro prisioneiro das condições mais elementares da economia natural.


Sirva de exemplo o fato ocorrido na região do Oriente da Bolívia, onde apresentou inegáveis sucessos a reforma agrária posta em prática naquele país, em agosto de 1953. Tal medida, como já salientado, caracteriza-se como um procedimento jurídico radical, que determinou a passagem imediata de toda a propriedade do solo ao seu cultivador imediato. Na área em causa, esta modificação da estrutura jurídica da terra acarretou a eliminação das grandes fincas ou latifúndios dedicados ao cultivo de gêneros agrícolas de subsistência, explorados num regime de locação ou parceria, que importava em prestações pesadíssimas para as verdadeiras classes agrícolas nacionais. Logo se fizeram sentir os efeitos benéficos da providência - que foi acompanhada do auxílio tecnológico emprestado pelo Ponto IV, na base de providências de educação agrícola. Assim, simultaneamente com a reorganização da propriedade fundiária, realizou-se esforço mínimo de racionalização de seu cultivo, que apresentou amplos frutos.


Na presente etapa de desenvolvimento brasileiro, as medidas de ordem institucional, nas hipóteses consideradas, podem representar o ponto imediato de ataque à modificação da estrutura do setor primário. Isto mesmo antes de se fazerem sentir as providências de incremento maciço da produtividade agrícola, que ensejará, a prazo curto, a mudança de etapa na vida econômica nacional. Até que esta se complete, trazendo os benefícios da reorientação geral da vida econômica do país, e de maior possibilidade de aplicação de capitais na agricultura, a reforma terá, ao lado da mudança do regime jurídico da terra, os seus instrumentos fundamentais, no cuidado do planejamento e na concomitância, com a entrega do solo, da intensa disseminação do ensino agrícola.


Como regra geral, considera-se que a reforma agrária deve ser condição para a imediata melhoria da atividade agrícola, com o fornecimento ao trabalhador rural das condições creditícias e tecnológicas requeridas para uma exploração racional da propriedade. Mas a demora da outorga de tais fatores não deve ser requisito terminante para atrasar a formalização das garantias jurídicas de aproveitamento da terra àqueles que de fato já a trabalham. Reconhece-se, no caso, um dos princípios acolhidos pelos exemplos práticos das reformas já verificadas no Continente, no que respeita à reorganização dos latifúndios explorados efetivamente por posseiros, em lavouras de subsistência. As medidas aludidas, de assistência creditícia ou tecnológica, bem como o aperfeiçoamento dos sistemas de comercialização dos produtos agrícolas, são inseparáveis de uma reforma agrária. Mas não podem substituir o específico papel que nelas desempenha, de imediato, a redistribuição da terra em favor das populações já dedicadas à sua exploração.




(Nacionalismo e desenvolvimento, 1963.)




* Jurista, filósofo, professor, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

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