Oportunidade
de reforma agrária nos processos de desenvolvimento do tipo
brasileiro
* Por
Cândido Mendes
Em
processos como o brasileiro, as relações entre a agricultura e a
indústria vão evolver em duas fases distintas. Na primeira, da qual
se acha em vias de sair o país, registra-se uma carência acentuada
da oferta do setor agrícola de subsistência, e a perda de sua
posição no rateio do produto nacional. Deve-se o fato à expansão
da indústria e à necessidade de transferir-se maciçamente, para o
sustento desse esforço, os resultados do setor agrícola de
exportação. O desequilíbrio se torna assim um risco forçoso do
crescimento econômico nesta etapa, e de todo utópica seria a
possibilidade de conjurá-lo mediante uma reforma agrária que se
preocupasse tão-só com um mero redistributivismo da terra.
No
curso do processo de mudança de estrutura, nessas condições, a
industrialização pressionará sobre a demanda de gêneros sem,
paralelamente, assegurar à agricultura recursos adequados à
ocupação produtiva do solo. Um novo fator de desajuste decorrerá
dos efeitos de todos os aparelhos de intermediação e
comercialização que insularam o produtor direto numa situação de
pauperismo frente à perspectiva geral de crescimento dos outros
setores do país. Perdurará nesta situação enquanto não forem
conjurados os pontos de estrangulamento e assegurado o serviço de
transportes, abastecimento e armazenagem, requeridos para a efetiva
integração da base agrícola à economia de mercado do país. Nesta
fase a atividade agrícola sofre inevitável espoliação, diante da
prosperidade do país. É forçada a participar de um complexo
inflacionário sem poder adaptar-se a ele, com a mesma flexibilidade
das demais atividades econômicas. E este pauperismo forçado
concentra-se no produtor direto, pela rigidez da parte que lhe cabe
no rateio da renda agrícola, dada a acumulação de sobrepreços que
sofrem os valores de mercado pela ação dos intermediários.
Numa
segunda etapa do desenvolvimento, realizados os trabalhos de
infra-estrutura e amadurecido o processo industrial, a correção do
desequilíbrio inicial entre os setores primário e o secundário
seria condição sine qua non para que não entrasse em colapso a
economia nacional. Dele dependeria a estabilização do mercado
interno, de estrutura nitidamente urbana, que a indústria criou no
país.
Como
foi aludido, o problema crucial dessa fase residiria no alargamento
da base alimentar de subsistência, exigida por aquele mercado. Já
se poderia prever então, para dedicar a tarefa, uma alocação mais
flexível de recursos, tendo-se em vista a expansão da renda
nacional ocorrida no primeiro período, bem como o preenchimento das
tarefas de maior prioridade, ligadas aos investimentos de
infra-estrutura, e à sustentação do crescimento industrial do
país. Reforçaria a expansão do setor agrícola, nesta etapa, a
possibilidade de ser reaplicada nos cinturões de alimentação
urbana, a mão-de-obra que abandona as culturas de exportação, à
proporção que se for acentuando o seu declínio estrutural.
Nessas
condições, a exploração de um divórcio entre desenvolvimento e
expansão agrícola, que dá lugar ao clamor por uma reforma agrária
isolada, desligada do planejamento, reflete estritamente o imobilismo
relativo do setor primário, na primeira etapa colonial. O que na
verdade se verifica é que, na fase referida, o ataque aos problemas
do setor agrário se confunde com a criação das condições de
infra-estrutura, principalmente em transportes, que são requisitos
para que se integre o mercado interno nacional. As "metas
agrícolas" ficariam necessariamente a reboque do setor
industrial mais dinâmico, e geralmente na dependência da atividade
promocional do Estado. Elas se cingiriam a esforços destinados mais
a evitar a ampliação do desnível entre a produtividade industrial
e a agrícola, do que propriamente a compensá-lo. De modo geral, na
etapa referida a sua expansão se faria de forma parasitária, ou
como subproduto do próprio crescimento industrial. Resultariam os
seus recursos de subsídios obtidos como compensação ao confisco da
receita cambial necessária à industrialização do país.
No
cálculo da oportunidade econômica destes investimentos, passariam
eles a depender não de um empreendimento autônomo, mas de sua
obtenção como derivados da expansão industrial que atingisse a uma
determinada escala de investimento.
Não
seria assim de se estranhar que, pela ausência de dinamismo
espontâneo, fossem as metas agrícolas as mais atrasadas no campo de
iniciativas como a construção de silos e armazéns, o
estabelecimento da indústria de fertilizantes, ou a obtenção de
implementos e maquinaria rurais.
Se,
desligada do desenvolvimento, a reforma agrária clássica
representaria uma contradição para seus objetivos, pressupostas as
condições de infra-estrutura para a mudança do aparelho econômico
colonial ela se transformaria, desde logo, num poderoso instrumento
do programa emancipatório. Ao contrário do que pretendem os
teóricos ortodoxos, que condicionam toda "reforma" à
melhoria direta da produtividade, da educação e do crédito rurais,
a mudança do estatuto jurídico da terra apresenta impactos
positivos imediatos sobre o desenvolvimento, assim que os mercados
urbanos se podem integrar, pelos trabalhos citados de
infra-estrutura, aos setores agrícolas de que passa a depender a sua
base alimentar. É por isso que o redistributivismo tem o seu lugar,
de pronto, no processo de desenvolvimento, quanto às propriedades
entregues à agricultura de subsistência, em regime de desperdício
ou de espoliação. E mais se acentua este impacto benéfico se a
reorganização dos latifúndios for acompanhada da outorga aos
exploradores diretos da terra de um mínimo de técnicas de cultura e
de educação que melhorem o rendimento da terra, mesmo à margem de
incrementos substanciais de capital, em maquinaria ou outros
benefícios.
Vale
dizer que a oportunidade da reforma, dentro de urna política de
desenvolvimento, já ao fim da sua primeira etapa, está condicionada
à diversidade de destino econômico apresentado pela propriedade
agrícola. Nos latifúndios de exportação, o redistributivismo
importaria em sério risco econômico, já que poderia importar numa
substituição de culturas, trocando-se a lavoura de exportação
pela economia de roçados. Regrediria, sensivelmente, em
conseqüência, a oferta para a produção exportável, e
golpear-se-ia assim a receita cambial do país. Inteiramente distinta
seria a situação do latifúndio dedicado à agricultura de
subsistência ou economicamente inaproveitado. A sua entrega imediata
ao explorador direto se transformaria num fator de estímulo à
produção, ao desatrelar a propriedade de uma cadeia de prestações
geralmente feudais, e ao permitir a superação do insulamento que
tornava o posseiro prisioneiro das condições mais elementares da
economia natural.
Sirva
de exemplo o fato ocorrido na região do Oriente da Bolívia, onde
apresentou inegáveis sucessos a reforma agrária posta em prática
naquele país, em agosto de 1953. Tal medida, como já salientado,
caracteriza-se como um procedimento jurídico radical, que determinou
a passagem imediata de toda a propriedade do solo ao seu cultivador
imediato. Na área em causa, esta modificação da estrutura jurídica
da terra acarretou a eliminação das grandes fincas ou latifúndios
dedicados ao cultivo de gêneros agrícolas de subsistência,
explorados num regime de locação ou parceria, que importava em
prestações pesadíssimas para as verdadeiras classes agrícolas
nacionais. Logo se fizeram sentir os efeitos benéficos da
providência - que foi acompanhada do auxílio tecnológico
emprestado pelo Ponto IV, na base de providências de educação
agrícola. Assim, simultaneamente com a reorganização da
propriedade fundiária, realizou-se esforço mínimo de
racionalização de seu cultivo, que apresentou amplos frutos.
Na
presente etapa de desenvolvimento brasileiro, as medidas de ordem
institucional, nas hipóteses consideradas, podem representar o ponto
imediato de ataque à modificação da estrutura do setor primário.
Isto mesmo antes de se fazerem sentir as providências de incremento
maciço da produtividade agrícola, que ensejará, a prazo curto, a
mudança de etapa na vida econômica nacional. Até que esta se
complete, trazendo os benefícios da reorientação geral da vida
econômica do país, e de maior possibilidade de aplicação de
capitais na agricultura, a reforma terá, ao lado da mudança do
regime jurídico da terra, os seus instrumentos fundamentais, no
cuidado do planejamento e na concomitância, com a entrega do solo,
da intensa disseminação do ensino agrícola.
Como
regra geral, considera-se que a reforma agrária deve ser condição
para a imediata melhoria da atividade agrícola, com o fornecimento
ao trabalhador rural das condições creditícias e tecnológicas
requeridas para uma exploração racional da propriedade. Mas a
demora da outorga de tais fatores não deve ser requisito terminante
para atrasar a formalização das garantias jurídicas de
aproveitamento da terra àqueles que de fato já a trabalham.
Reconhece-se, no caso, um dos princípios acolhidos pelos exemplos
práticos das reformas já verificadas no Continente, no que respeita
à reorganização dos latifúndios explorados efetivamente por
posseiros, em lavouras de subsistência. As medidas aludidas, de
assistência creditícia ou tecnológica, bem como o aperfeiçoamento
dos sistemas de comercialização dos produtos agrícolas, são
inseparáveis de uma reforma agrária. Mas não podem substituir o
específico papel que nelas desempenha, de imediato, a redistribuição
da terra em favor das populações já dedicadas à sua exploração.
(Nacionalismo
e desenvolvimento, 1963.)
*
Jurista, filósofo, professor, escritor e membro da Academia
Brasileira de Letras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário