Sete estudos para a mão esquerda
* Por Paulo Henrique Britto
I
Existe um rumo que as palavras tomam
como se mão alguma as desenhasse
na branca expectativa do papel
porém seguissem pura e simplesmente
a música das coisas e dos nomes
o canto irrecusável do real.
E nessa trajetória inesperada
a carne faz-se verbo em cada esquina
resolve-se completa em tinta e sílaba
em súbitas lufadas de sentido.
Você de longe assiste ao espetáculo.
Não reconhece os fogos de artifício,
as notas que ainda engasgam seus ouvidos.
Porém você relê. E diz: é isso.
II
Tento dizer: a tarde tem o tom
exato de outra tarde que conheço,
mas qual? (Mas neste instante escuto o som
de uma outra voz, que é minha e desconheço,
e o que ela diz é belo, é certo e é bom.
Mas o que digo assim não reconheço.
É como um deus de bolso, esta presença
que o próprio gesto de negar evoca.
A voz é dela, embora me pertença
a música. E mais a mão que a toca.)
Naturalmente, enquanto isso a tarde
se apaga, anêmica, despercebida,
e vem a noite, com seu negro alarde.
Desde o começo a causa era perdida.
III
Sou uma história, a voz que a conta, e o imenso
desejo de contar outra diversa,
que porém não deixasse de ser essa.
Palavra que não digo e que não penso
e no entanto escrevo — eu sou você?
(Mas não era isso o que eu ia dizer,
e sim uma outra coisa, obscura e bela,
que sei, com uma certeza visceral,
ser a verdade última e total —
e só por isso já não creio nela,
pois a certeza, tal como a memória,
é por si só demonstração sobeja
da falsidade do que quer que seja —)
Mas isso já seria uma outra história.
V
Não é assim: os dias claros, noites límpidas,
cada gaveta satisfeita em seu lugar,
e a consciência administrando tudo isso —
Nada é assim. Nada é tão bom. Na hora H
algum detalhe escapa, talvez uma vírgula
fatal, ou falta o risco no meio do A,
e o mundo vira um caos de músculo e metal.
Ou então o dia até que cumpre sua rotina
sem aporias nem contradições, mas mal
a noite desce as velhas dúvidas cretinas
levam de volta ao estribilho inicial,
ao X do problema: as coisas fora de esquadro,
o desajuste entre o desejo e o vegetal
da consciência, complacente, amputada.
VI
Nenhuma lição nesta paisagem
que não o fartamente conhecido:
as coisas nos lugares, engrenagens
do estar-em-si, do tudo-é-relativo,
etc. A mesma grafitagem
inconseqüente de sempre: rabisco
logo existo. — O mundo segue opaco,
imune à consciência e seus lampejos
de lógica, sua falta de tato,
sua avidez, seus deuses e desejos.
(Aqui termina o sonho. Fim das névoas,
caramelos e almofadas formidáveis.
Daqui pra frente, as portas sem remédio
e todas as maçãs assassinadas.)
VII
A solução difícil. As adversárias.
Escrever a contrapelo do papel.
E aquela que acabou sendo riscada —
calou-se, escapuliu, não se rendeu —
era precisamente a procurada.
Sobrou só isso que, leitor, é teu.
Só isso, sim. Que ao mesmo tempo é tudo.
Um suscitar de sílabas — não mais
a deusa atarantada a nos soprar
um vento em nosso ouvido (aliás surdo) —
e no entanto cabe dentro um mundo,
um universo, um homem a espernear.
Um que afinal domou as adversárias,
essas palavras que me deixam mudo.
*
Poeta, lingüista, professor e tradutor, autor dos livros “Liturgia da matéria”,
“Mínima lírica”, “trovar claro” e “Macau”.
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