Fevereiro
na praia grande de Itapocoroy
* Por
Urda Alice Klueger
Eu lembro muito bem:
era fevereiro, e eu estava adolescendo naquele tempo mágico em que amávamos os
Beatles e os Rolling Stones. Meu pai tinha um restaurante lá na Praia Grande do
Itapocoroy, mas eu nunca morei lá: ficava em Blumenau durante os meses de aula,
e ia para a praia nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e julho.
Estar adolescendo
naquele tempo mágico em que o mundo fervilhava com uma coisa totalmente nova
chamada Movimento Hippie, e ir passar as férias num lugar privilegiado como a
Praia Grande do Itapocoroy era mais que passar manteiga em focinho de gato. Se
gato fosse, com certeza lamber-me-ia toda de tanta beleza, de tanto
encantamento, de tanto mistério que havia naquele canto onde morávamos, e na
vizinha praia de Armação do Itapocoroy. Eu e minha irmã Margaret tínhamos
nossas obrigações, em tempo de férias, como ajudar nossos pais em coisas do
restaurante (havia manhãs em que eu descascava um saco inteirinho de batatas!)
e outras coisas assim, mas, nas tardes, baldes de plástico em punho, éramos
encarregadas de ir até a vizinha Armação
buscar camarão fresco. O plástico ainda era uma coisa um tanto nova no nosso
mundo, e os baldes coloridos tinham seu charme, e lá íamos nós, vencendo a
branda elevação que separava uma praia da outra, e que, na direção da Praia
Grande, era forrada de uma vegetação baixa, pois o vento Sul, quando batia,
cortava qualquer coisa mais alta que quisesse se criar por ali. E na Armação,
deixávamos nossos baldes coloridos nas salgas (para quem não sabe, salga é o
lugar onde se descasca o camarão), e caíamos na água, por muitas horas, até de
tardinha, quando o camarão pescado pela manhã já estivesse descascado e os
nossos dedos estivessem roxos e murchos de tanto ficar na água.
Tínhamos uma turminha
de tomar banho, naquelas tardes, e lembro agora do Nel do seu Biéli, do Sérgio
Pequeninho (que era um grandão, apesar dos seus 12 anos, que ele mentia dizendo
serem 14), e outras crianças e adolescentes dos quais já não sei mais o nome.
Brincávamos muito na água, naquelas tardes de férias, e mergulhávamos, e quando
percebemos, estávamos todos nadando, sem que ninguém tivesse nos ensinado.
Há milhares de coisas
para contar daquele tempo encantado em que o mundo se movia entre as amarguras
de uma guerra do Vietnã e a mensagem de Paz e Amor dos meigos hippies que nos
encantavam. Uma, porém, está muito forte dentro de mim nesse fevereiro: era o
florescimento de todas as ervas, arbustos e capins da Praia Grande a cada vez
que fevereiro chegava.
Era muito lindo! Já disse que havia uma suave subida da Praia
Grande, que descia em Armação, e que ali o vento Sul não deixava se criar
nenhuma planta grande. Tudo era forrado, porém, de capins, matinhos e pequenos arbustos,
que pareciam enlouquecer em fevereiro! Todos aqueles seres vegetais explodiam
em flores e florinhas brancas e prateadas, desde o mais avantajado arbusto até
o mais humilde fiapo de capim, que criava toda uma espiga cheia de florzinhas
brancas grávidas de finas sementes, e tudo ficava tão branco e prateado que se
tinha a ilusão que, em fevereiro, nevava na Praia Grande do Itapocoroy! Eu primeiro olhava, depois andava no meio
daquela loucura da natureza, tão grávida de beleza quanto as plantas estavam
grávidas de sementes, e já de noitinha, quando o sol se punha lá no fundo
daquele aclive nevado, e deixava o céu com todos os matizes do vermelho, eu
olhava pela janela da nossa cozinha e nem conseguia acreditar que tanta beleza
fosse possível. Aquilo me gerava uma grande angústia – era beleza demais para
ser absorvida por uma simples adolescente que mal entendia da vida.
Há uma cena daqueles
tempos que nunca se apagou da minha alma:
eu andando por entre a loucura branca daquele florescimento de
fevereiro, cantando a música de Chico Buarque que acabara de sair, e que
começava assim:
“Você
era a mais bonita
das
cabrochas desta ala
você
era a favorita
onde
eu era o mestre sala...”
Era o verão de 1967, e
eu já sabia que os verões nunca voltavam, mas também sabia que, nos fevereiros,
a Praia Grande do Itapocoroy sempre ficaria coberta da neve de suas flores de
novo. Ou não? Talvez hoje tenham construído casas por toda ela, e já não tenha
sobrado espaço para viverem ali capins e matinhos que enlouquecem em fevereiro.
Tomara que não! Não é lícito que o Ser Humano quebre a magia dos verões.
Blumenau, 19 de
Fevereiro de 2002.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de vinte e seis livros (o 26º lançado em 5 de maio de 2016), entre os
quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
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