A vida na palavra caminha
* Por
Rubem Costa
Tinha meus 6 ou 7 anos
de idade. E já navegava nas ruas com a liberdade que os tempos serenos
permitiam. Nada sabia da vida, mas ali aprendia do mundo o que em casa me
ocultavam. Assim naquela manhã, de estilingue na mão, caçava passarinho ou
qualquer coisa esvoaçante que sentasse nos fios elétricos, quando vieram me
chamar avisando que tia Libânia chegara de São Paulo e queria me ver. Para não
perder a viagem (minha, não dela) disparei a última pedra que foi atingir
certeira alvo. Exultei. Derrubara uma libélula que se aventurara pousar na
fiação. Ofegante, com o troféu na mão entrei vitorioso na sala, gritando antes
de qualquer saudação: — “tia, derrubei uma lava-bunda!”
Na verdade, confesso
que não foi bem assim que falei. Para não escandalizar, estou agora usando uma
expressão branda, porque, em verdade, na minha ingenuidade o sinônimo empregado
era outro, bem mais cru. Abobada, minha mãe zangou-se, enquanto a irmã de meu
pai, espírito aberto, se desmanchava em ruidosa gargalhada. Fiquei atarantado,
confuso com a conflitante reação, pois nada sabia das conveniências sociais que
recomendam não se repetir em casa tudo que se ouve na rua. Uma convenção,
descobri só mais tarde, socialmente importante para garantir a hipocrisia
comportamental do grupo. Um acordo selado em grego que tem gramaticalmente uma
definição — eufemismo — disfarce de que se serve o homem em sociedade para não
revelar a realidade do pensamento honesto.
Bem que o velho
Imanuel Kant tinha razão quando sustentava que os nomes são meras concepções do
intelecto que o espírito aplica às coisas. Na rua se fala como a mente enxerga;
no baile se usa máscara para esconder a nudez do rei. Tanto que, justificando
minha heróica concepção da infância, o Aurélio dicionariza os seguintes
verbetes na letra “l”: — “lava-bunda — sin. libélula. Brasileirismo —. e
“Libélula — inseto de corpo estreito com dois pares de asas membranosas que se
desenvolvem em águas correntes ou estagnadas”. Para ilustrar a leveza do inseto
e a delicadeza da imagem, o dicionário transcreve um poema de Cecília Meireles;
“Havia pombas que arrulhavam em redor de Josefina e libélulas que valsavam com
seus vestidos de gazes”.
Só mais tarde, já no
ginásio, compreendi a razão do eufemismo. Tivesse a grande poetisa usado o
brasileirismo, imaginem como ficaria a estrofe: — “com seus vestidos de gazes,
lava-bundas bailavam em redor de Josefina”. Nada poético e evidentemente pouco
olfativo. Para entender a emblemática da linguagem, existe em lexicologia um
capítulo a que se dá o nome de semântica, neologismo criado pelo filólogo
Michel Breal, com base no grego semantiké cuja finalidade é estudar a
significação das palavras e as modificações que sofrem no tempo e no espaço.
Entenda-se conceitualmente o substantivo — palavra — como expressão oral ou
escrita de uma idéia. Por ser símbolo da linguagem, desde a antiguidade tem
sido uma das preocupações dos filósofos no seu afã de explicar o conjunto da
vida. Na velha Grécia, Sêneca e Platão já porfiavam em estabelecer a relação
entre conceito e forma que, por outra maneira de dizer, representa descobrir se
a representação existe intrinsecamente ou se depende apenas do consenso humano.
Sem gastar tempo com a discussão acadêmica, parece que importante é apenas
lembrar a realidade histórica, ou seja, que a linguagem é instrumento que
reflete o fato social com as modificações que se operam no seio do povo. Assim,
como espelho da sociedade, que evolui e se transforma no perpassar dos
acontecimentos, a palavra repercute interiormente no ser individual pelo papel
relevante que exerce na formação de usos e costumes.
Plasma princípios de
ética e moral, participando psicologicamente na vida do ser, como bem ilustra o
seguinte fato lingüístico guardado na história e se insere na Ibéria, onde nos
primórdios da literatura galaico-portuguesa aparece um gênero poético que por
sua característica trovadoresca recebeu o nome de “cancioneiro”. Desse modelo
poético, o mais célebre e antigo é sem dúvida o Cancioneiro da Ajuda compilado
provavelmente no século 13. Analisando a obra, Carolina Michaelis, grande
filóloga alemã que dedicou a existência ao estudo a língua portuguesa, deparou
com um fato endógeno que vale a pena relatar por ser talvez o mais intrigante
já descoberto na vida das palavras. Uma história que na sua tipicidade revela a
curiosa caminhada de ida e volta do significado de um vocábulo através dos
tempos. Eis que na longínqua época, quando a canção era ainda um acorde de
ternura, havia a palavra “cervo”, já então maldita, que andava às turras com o
bom costume. Sabe-se lá por que mistério, o vocábulo — que etimologicamente era
específico desse animal ruminante — corria desbragado na boca do povo como
designativo de homem afeminado, tal como se falava aqui ironicamente de um
deputado federal recentemente falecido.
Para apagar a imagem
debochada do animal marcado, os “varões de Plutarco” da época, em substituição
ao nome espúrio, afivelaram um termo forte que servia para traduzir a
virilidade de qualquer macho: — veado — proveniente do latim — venatum — foi o
nome escolhido. Inobstante, os séculos se sucederam e — pelos ínvios caminhos
das palavras — o significado embolou no tempo. Do sentido popular anteriormente
atribuído ao "cervo", em pouco tempo ninguém mais se recordava.
Entretanto, sabe-se lá por qual bruxaria, a imagem depreciativa que dele
emanava ficou grudada no substituto que, de figura símbolo do machismo que era,
passou a ser corporificado como retrato de corpo inteiro do substituído. O
preconceito ao termo se tornou tamanho através dos séculos que em nossa era
chegou ao computador. No momento em que escrevia este texto, ao apelar para a
correção léxica, apareceu na tela de auxílio a estupefaciente advertência —
veado = homossexual — alterar. — Vai daí que em psicologia tanto quanto na
física, preside como norma corrente a lei de Newton: — “toda ação provoca uma
reação diretamente oposta”.
Consequentemente,
diante da provocação social, disfemia, natural era que surgisse no mundo dos
desiguais o instrumento de proteção que aí está — o “orgulho gay” — com suas
monumentais “paradas” que reúnem milhões de adeptos em nome da faculdade de
escolha e defesa da liberdade de decidir sobre si mesmo que o estado de direito
garante. — Não se aventure pois a colocar tacha de veado a quem quer que seja.
É tabu. Sem dúvida, estará sujeito a processo judicial por dano moral.
Eufemismo e disfemismo. Pela palavra caminha a vida.
*
Professor, jornalista e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.
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