Manhã
* Por
Mara Narciso
Amanhece. Os
passarinhos cantam como se já fosse primavera, que de fato é. São livres e mostram-se
à vontade, parecendo que alguma lei proíbe que sejam caçados, e que, estando
num país sério, essas leis estejam valendo, e sobre esses animais não haja
ameaça. Voam baixinho, junto às casas, quase comem na mão das pessoas. Muitas
espécies que tinham desaparecido voltaram. Nem dá para imaginar que há meio
século meninos saíam para caçar passarinhos com suas espingardas de chumbo e
voltavam com um monte de aves mortas, em penca, amarradas pelos pés. Matavam
por matar ou para calá-las (?). Muitas nem tinham carne, e eram descartadas.
Tempos bons, de um lado, e tristíssimos de outro. Que os erros possam ensinar
algo.
Os passarinhos, pelo
fato de ter a imensidão do céu por moradia, possuem tudo e não se apegam a
nada. Os pardais, os mais comuns nas cidades, escolhem uma árvore qualquer ou
um arbusto numa varanda, ou mesmo um espaço no telhado e sentem que ali é o seu
lar. Por alguns dias investem força e tempo na construção do seu ninho. Findo,
agasalham-se, botam os ovinhos, chocam em 12 dias, esperam nascer os
filhotinhos, os alimentam, e estes, em 10 dias criam penas, crescem, aprendem a
voar e desaparecem, não deixando marcas e nem laços. Desapegados bichinhos. Que
possam, com a simplicidade, ensinar o desapego com coisas, com gente e com a
vida. Caso não existisse tanto agarramento, haveria menos medo e insegurança.
A parte mais bela do
dia é a manhã, quando se manifesta maior força e energia. Coisas do ritmo
circadiano dos hormônios. No entanto, desde o advento da internet os jovens e
os não tão jovens passaram a se deitar cada vez mais tarde e a acordar ao meio
dia. São notívagos. A qualquer hora, a vida pode ser boa, mas de manhã, parece
mais bonita. Acordar, abrir a janela e receber no rosto uma lufada de vento com
cheiro de mato não é tudo que se quer da vida, mas é bom. A tecnologia é tão
onipresente, que falar do céu, do sol e do vento é ser romântico, é quase ter
espírito de poeta.
Na semana da criança
uma propaganda das Lojas Habib’s mostra pais e mães com seus filhos, chegando a
uma clínica para algo que seria um teste psicológico. Cada dupla chega num
horário, portanto não se encontram. Ao entrar seus celulares são confiscados.
Não tem som nem televisão, mas tem livros, cadernos, lápis de cor, tinta,
telefone de lata, brinquedos de madeira, futebol de mesa, de acordo com a idade
da criança. A espera é longa, propositalmente, assim, cada pai, mãe e criança
começa a pegar coisas para brincar. Relaxados, inventam brincadeiras,
divertem-se. Tudo é filmado. Quando finalmente são chamados para o teste
psicológico, na verdade o teste já está feito. A filmagem da
espera/interação/diversão é mostrada à dupla, que ao se ver na tela, vai pouco
a pouco mostrando surpresa, contentamento, alegria e um quase choro. E a moral
da história: qual é o melhor presente? O convívio sem interferência
tecnológica.
Os avanços são
bem-vindos e é preciso abraçá-los. Nem é bom falar que o exagero seria ruim,
pois o que é muito para uns, pode não ser demais para outros. Então, eu sou eu
e você é você. Eu o aceito, e você me aceita? Eu não sou seu amigo apenas
quando concorda comigo. Samba de uma nota só? Que seja. Divergir é normal, e
usar o celular até debaixo do chuveiro seria exagero? Caso esteja dependente a
este ponto e se de fato necessita disso, talvez esteja precisando de afeto ou
de ouvir o canto dos passarinhos pela manhã.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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