Aos
29 anos da morte de Gilberto Freyre
* Por
Urariano Mota
Os seus livros se
apoiavam em pesquisas originais, tidas até então como indignas, de receitas de
cozinha aos anúncios de escravos na imprensa e fotos de álbuns de famílias
senhoriais. Uma inteligência e sensibilidade de gênio a serviço do objeto que
estudava. Original e mui confiante desse espírito original. Afoito, com aquela
afoiteza que caracteriza os que têm a consciência do próprio valor.
Casa-grande &
senzala, dos livros de análise histórica surgidos no século XX, é para mim o
que vai atravessar a nossa e as vindouras gerações. Tem a qualidade de ser bem
escrito, e bem escrito de tal forma, que mais parece literatura, romance. Esse
Freyre era um homem de extrema sensualidade, que tinha, entre outras
perversões, o gosto da prosa. Não há livro científico tão bem escrito quanto
Casa-Grande. Minto: talvez só A Origem dos Sonhos, de Freud. E o seu conteúdo
(supondo uma separação dura de forma e conteúdo)?
Em uma época de
doutrinas racistas no Brasil e no mundo (lembremos o grande Euclides da Cunha a
falar de raça frágil em Os Sertões), onde sempre se disse que nós éramos
sub-raça (até hoje há quem insista nisso) por força da miscigenação, Gilberto
Freyre destacou o avanço da mistura de raças, e não só a mistura, Freyre
ressaltou o papel do negro como agente da nossa formação cultural e de raça.
Ele chega a frases lapidares, como na resposta que dá à ideia reinante de que o
negro era feio: "feia é a miséria" (em que o negro vivia). Lembro — e
tudo que digo aqui é de memória, sem consulta — do destaque dado por ele a alguns
grupos de negros, muçulmanos, que eram alfabetizados, artesãos sofisticados,
escravos de senhores de engenho analfabetos. (Isso ocorreu com mais frequência
na Bahia.)
Notem que o livro é de
1933, e chegou a ser mandado queimar pelos padres da igreja em Pernambuco.
Coisa herética, do diabo, com suas revelações vexatórias da vida sexual,
promíscua nos engenhos, em que às vezes as crianças negras papavam o
"rabo" dos meninos brancos.
A sua orientação e
influência, como uma gripe inescapável, se estendeu sobre a prosa e poesia dos
nossos mais brilhantes escritores, de José Lins do Rego a Manuel Bandeira e
Ascenso Ferreira. Também aos maiores pintores, como Lula Cardoso Ayres e Cícero
Dias. Mas o poder da prosa de Gilberto Freyre, a beleza encantatória do que
escreveu nos trechos vários em que sacrifica a ciência para não perder o ritmo
de um parágrafo, esse poder e esse encanto têm que ser mortos.
Um ponto nevrálgico da
sua obra é que, ao lado dos avanços, reproduz também os limites do autor e da
sua classe: Gilberto Freyre é filho e neto de senhores de engenho, um sujeito
culto, genial, portanto "ovelha negra" em seu meio (cultura, talento
e civilização sempre aguçam conflitos, em lugar de apaziguá-los), mas filho dos
seus limites de tempo e de classe.
Isso quer dizer: ele
não vai fundo na violência e violentação sofrida pelo escravo. Ele não chega ao
extremo de outro grande brasileiro, Joaquim Nabuco, que em alguns trechos de
Minha Formação tornava lírica a relação entre escravos e senhores da sua infância.
Mas faz, é verdade, uma defesa e ataque contraditórios, às vezes em um mesmo
parágrafo, do engenho e da senzala. Em resumo: Casa-grande & senzala, o seu
maior livro, em 1933 foi revolucionário. Mas o tempo e a democracia deram luz e
ultrapassaram a escravidão ali narrada.
Gilberto Freyre é o
homem que glorifica a colonização portuguesa. E nesse caso, tão brasileiro,
pela dissolução da crueza com ares de fazer graça, entre um pigarro no cachimbo
e um costume bárbaro, como quem dilui a violência com uma piada. Nesse caso
particular, é preciso vencer Gilberto Freyre. Vencê-lo no sentido também de uma
reação à sua influência avassaladora e paralisante.
Mas antes, ele deve
ser muito estudado. Contraditoriamente, antes de vencê-lo, Gilberto Freyre há
que ser assimilado. Para que seja superado em uma etapa necessária rumo ao
lugar onde a verdade da nossa história seja soberana. E se faça um acerto de
contas com o passado escravocrata, estudado por ele a partir da casa-grande,
que ainda resiste. Vencê-lo como uma forma de superação necessária. E muito
estudá-lo, voltando a suas luzes de escritor, de gênio.
Superar é uma forma de
assimilar a tradição.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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