Gauguin: um artista seminal
* Por
Plínio Palhano
O jovem Picasso quando chegou a Paris (1900), no
propósito de ampliar os seus horizontes e manter contato com a vanguarda
artística parisiense, com o seu olhar e cérebro fulminantes, absorvia tudo o
que estava ao redor, incorporando ao seu trabalho a graça inconfundível do
desenho de um Toulouse-Lautrec; a pincelada e cor expressionista de Van Gogh; o
pós-impressionismo em voga; a geometria do espaço pictórico, de Paul Cézanne; e
mais: conheceu um escultor, Paco Durrio, num círculo de artistas espanhóis
exilados, que mostrou quadros do pintor francês Paul Gauguin (1848-1903) e
forneceu uma cópia da primeira edição de Noa Noa, em que o artista relata suas
experiências no Taiti; o escultor foi um guardião fiel dessas obras, a pedido
do autor, enquanto o artista empreendia a sua longa viagem à Polinésia. Em
seguida, acompanhou com atenção a grande retrospectiva do selvagem Gauguin, com
cerca de duzentas pinturas, em 1906, no Salon d'Automne, que foi uma revelação
não somente para o espanhol Pablo Picasso, mas também para Henri Matisse, Raoul
Dufy, André Derain e outros artistas que ficaram impressionados com a luz do
Taiti, refletida através de sua obra.
Para eles o sentido de beleza européia estava sendo
colocado em xeque, e o mundo primitivo se revelava como uma nova fonte a ser
explorada pela arte. Daí o interesse dos artistas do início do século XX pela
arte africana e a da Oceania. Picasso colecionava esculturas africanas, que o
influenciaram até o ponto de culminar na célebre pintura Les Demoiselles
d'Avignon (1907), que foi a semente do que viria a se chamar Cubismo, mas o
começo desse interesse deve-se ao fato de ter conhecido o caminho trilhado por
Gauguin, que revelou um mundo primitivo, um novo Éden, o paraíso perdido.
As suas pinturas luminosas, gravuras, cerâmicas e
esculturas revelaram a genialidade do artista que não encontrava respostas no
Ocidente civilizado e pensava que a arte poderia se rebelar contra as
contaminações européias e encontrar nas tradições da Oceania um universo que
iria libertar e germinar uma geração de artistas que ampliaria todas as
concepções anteriores - no que ele chamaria do seu "Estúdio dos Mares do
Sul", quando pretendeu voltar ao Taiti pela segunda vez.
Revolucionário em vários aspectos - na pintura, que
lançou novos caminhos; na gravura em que empreendeu técnicas admiráveis para o
seu tempo; na cerâmica, introduzindo elementos de forma, cor e matéria que a
diferenciava; na escultura, em que experimentou também a mistura com a técnica
da cerâmica; e no entalho, revelando o mundo mágico maori. Com espírito pioneiro,
antes de chegar à Polinésia, percorreu diferentes recantos, semeando idéias que
fizeram nascer movimentos artísticos com a sua verve de mestre, arrebatando
seguidores.
Assim foi na viagem à Martinica (1887), após
experimentações impressionistas, e à Bretanha - onde esboçou o que iria se
definir um estilo, na ilha do Mar das Antilhas Francesas, que seria a base para
a obra que iria concretizar. Lá, Gauguin e Charles Laval - discípulo que
conheceu em Pont-Aven - realizam trabalhos próximos nas temáticas e técnicas
ante as paisagens tropicais. Durante seis meses, onde produziu doze quadros,
captando cenas com títulos como Vegetação Tropical, O Lago, À Beira-mar, num
realismo às vezes das personagens que são representadas na paisagem, em cores
mais abertas, intensas, e na fatura da pintura longe dos quadros
impressionistas que realizou: Interior da Casa do Artista em Paris (1881); A
Neve (1883); Gauguin Diante de seu Cavalete (1885). Foi na Martinica que
despertou a lembrança da passagem pelo Peru (na infância - de um até os sete
anos -, com a mãe Aline Gauguin, filha de Flora Tristán, e a irmã, Marie),
alimentando sua poderosa imaginação, numa recordação de luz e pessoas, que o
impulsionaria a ir mais longe, pretendendo uma viagem libertadora e
"renascer longe da espécie humana", como foi a do Taiti e a das
Marquesas.
Na volta a Pont-Aven, cercado de admiradores que
vinham de Paris, onde formulou suas teorias, compartilha historicamente com
Émile Bernard a autoria do Sintetismo. Mais tarde, Bernard o acusou publicamente,
através de artigos, de que teria se apossado dos seus conceitos, amargando a
ascendência do gênio e a personalidade gauguiniana. Na verdade, eles comungavam
uma percepção do mundo objetivo e a abstração livre da cor. Daí a conotação que
davam às suas obras realizadas na Bretanha, como se fossem pinturas inspiradas
em vitrais, isto é, cores puras, separadas por linhas marcantes, como a obra
divisória e importante na história de Gauguin, A Visão Depois do Sermão ou Jacó
e o Anjo (1888), mesmo recurso plástico abordado por Émile Bernard, no quadro
Bretãs no Campo (1888).
Somente a passagem dele pela Bretanha, permanecendo
na história da arte como "Escola de Pont-Aven", seria suficiente para
identificá-lo como um criador, inovador e revolucionário do final do século
XIX, porque rompeu com a própria teoria impressionista da captação da luz - da
qual recebeu ensinamentos no início do seu percurso como pintor, através de um
dos maiores e mais puros impressionistas, Camille Pissarro -, abrindo caminhos
estéticos, reunindo um número de discípulos que foram importantes para propagar
as novas idéias que tinham como centro Paul Gauguin.
Sérusier foi um desses discípulos, que,
influenciado por ele, por ter recebido uma rápida aula de pintura - pouco antes
de Gauguin sair de Pont-Aven para Arles, em outubro de 1888, ao encontro de Van
Gogh -, realizou a obra O Talismã, e entusiasmado levou-a para Paris e
mostrou-a aos seus colegas que freqüentavam a Academia Julian. Todos ficaram
envolvidos com a inovação e abandonaram as velhas lições acadêmicas, formando
um grupo: Édouard Vuillard, Maurice Denis, Félix Vallotton, Pierre Bonnard e o
próprio Paul Sérusier. Foram estes - por influência de Sérusier, que conhecia
árabe e hebraico e sugeriu um nome ao grupo, identificando-o como uma irmandade
e os membros, profetas, por isso a palavra árabe nabi (profeta), - que ficaram
conhecidos como "Os Nabis" e posteriormente seguiram seus próprios
estilos. Sérusier expressou para Gauguin a liderança que o mestre exercia, mas
para ele - um artista livre e altivo - não interessava assumir nada, a não ser
continuar o seu trabalho e alçar vôos naturais.
Quando Gauguin conseguiu consolidar uma
personalidade artística, os antigos mestres e companheiros do Impressionismo
começaram a olhá-lo com mais cuidado. Pissarro já não via mais aquele discípulo
como um aplicado aluno das técnicas de captação da luz, mas como alguém que
estava com a visão equivocada, principalmente quando ele explorou mais
veementemente o mundo estranho do Taiti, pois achava que utilizava o exótico
para enaltecer a obra. O mestre o introduziu no mundo artístico, também
fazendo-o participar da quarta, quinta e sexta exposições impressionistas entre
os anos de 1879 a 1881, sem o beneplácito de Monet e Renoir; Pissarro, com o
tempo, adquiriu um olhar de incompreensão para o momentaneamente discípulo da
nova escola.
De Paul Cézanne, Gauguin adquiriu seis pinturas,
quando os recursos financeiros, proporcionados pelas atividades exercidas na
bolsa de Paris - que abandonou para se dedicar à pintura -, permitiam uma vida
estável, burguesa. As obras o influenciariam, sugerindo um aspecto de blocos
geométricos no espaço da pintura, sendo essa a concepção plástica de Cézanne:
"Eu queria fazer do impressionismo algo de sólido e duradouro, como a arte
que está nos museus". Sempre solicitava de Pissarro informações sobre
Cézanne, do que ele estava fazendo, e, numa carta, sugeriu que desse algum
medicamento homeopático para que ele revelasse os últimos segredos pictóricos.
A investida de Gauguin deixava-o desconfortável, ao interpretá-la que ele iria
"roubar" as suas "pequenas sensações", que guardava com
tanta discrição e perseverança; considerava Gauguin, como Van Gogh, um artista
louco. Mas o apoio dos pintores impressionistas veio de quem ele menos
esperava, até pelo humor inconstante e o grau de exigência que tinha sobre
todos os assuntos relacionados à arte. Este era Edgar Degas, que, mesmo não
tendo uma opinião formada quanto aos trabalhos de Gauguin, dizia que ele tinha
"alguma coisa", e com esse faro intuitivo adquiriu vários quadros
dele.
Entre os escritores, Gauguin era prestigiado, e
Mallarmé, com os seus seguidores, colocou-o como o maior representante da
pintura simbolista, realizando até jantares, com brindes e discursos em homenagem
ao pintor, apoiando-o na exposição na casa de leilões do Hôtel Drouot, em
fevereiro de 1891. Por intermediação de Charles Morice, Stéphane Mallarmé
aceitou solicitar a Octave Mirbeau que escrevesse um artigo sobre o artista
para a exposição ser bem realizada e dar algum fruto financeiro. Eis o que
Gauguin mais precisava para empreender a sua primeira viagem ao Taiti. Eles
conseguiram uma publicidade imensa, ajudando até nos lances para aumentar os
preços das obras, e também Gauguin foi obrigado a adquirir um quadro, com a
mesma estratégia.
Antes de partir para a Oceania definitivamente,
realizou em Paris uma das esculturas mais importantes de sua obra. De título
Oviri (O Selvagem, 1895) e altura de 74 centímetros, criada em meio às suas
inovações em cerâmica, moldada direto no barro e depois queimada, recebendo os
leves esmaltes para uma segunda fornada, deixando a maior parte da estátua em
barro bruto, aproximando essas partes a uma cor terrosa. Inspirada na mitologia
maori, representa uma mulher selvagem de aspecto animal, apertando um filhote
como numa ação de assassinato ou sufocando-o por proteção, num simbolismo de
morte e renascimento, talvez a morte do civilizado Gauguin para o seu
renascimento como selvagem. "Maravilhosamente ambígua", como diria um
crítico. E Picasso levou um tempo para absorver Oviri, o que o impulsionou ao
encontro de civilizações primitivas, não-européias.
O artista polêmico Gauguin, de natureza indomável e
vontade imperativa, abalou o seu tempo e as gerações futuras, principalmente
realizando obras de forma livre e concentradas nas teorias que lhe vinham ao
espírito, sem medir as conseqüências que os olhares e as mentes alheias
julgariam e muitas vezes não tão favoráveis, por falta de percepção. Como, por
exemplo, a pintura extraordinária realizada no Taiti, Manao Tupapau (O Espírito
dos Mortos Vela, 1892), baseada na lenda do espírito mau que vivia nas selvas e
se utilizava das noites para incomodar os nativos taitianos incautos. Gauguin
encontrava um paralelo nessa obra com a Olympia de Édouard Manet - que tanto
admirava, por ser um marco na pintura européia, rompendo com as tradicionais
representações de deusas imaginadas; levando com ele a reprodução dessa
pintura, nos estúdios onde permanecia -, pela franqueza do olhar para o
espectador - encontrado também na Olympia -, da menina nua, a figura do lado
esquerdo representando o tupapau, e mais os efeitos pictóricos que continha;
alguns críticos, em Paris, não aceitaram a comparação. Mas em outras pinturas
também ele fez o paralelo com a Olympia, como a realizada em Paris, no seu
retorno da primeira viagem ao Taiti, Annah, a Javanesa (1893): mesma
confrontação do modelo com o espectador. A chave dessas obras era que ele
transformava a sua visão de civilizado numa nova, de selvagem. Como ele dizia
de si próprio: "Sou um selvagem do Peru", orgulhoso de seus supostos
antepassados incas.
Ia Orana Maria (Nós te Saudamos, Maria), terminada
em 1892, representava Maria como uma Eva no paraíso, transformada numa vahine,
com o Cristo já nascido - pois se trata da anunciação do anjo sobre o
nascimento do Cristo -, de pele escura nativa, o anjo entre as folhagens, e
toda a cena numa mata com vegetação tropical. O catolicismo não aprovou a
pintura, por achar que as representações não eram compatíveis com as tradições
da Igreja.
Após realizar a primeira viagem ao Taiti
(1891-1893), com uma produção de sessenta e seis quadros, e a mente absorvida
no universo, que comparava a um Éden distante dos movimentos de Paris, que
ainda o interessava, retorna com a ansiedade natural para que todos vissem a
riqueza das observações plásticas que construiu, confiante num sucesso sempre
sonhado e anunciado à esposa Mette Gad Gauguin, pensando em reconstituir a vida
familiar destruída.
Propõe uma exposição ao marchand Durand-Ruel, e
este transfere para os filhos Joseph e George a realização, porque estava com
investimentos nos Estados Unidos para a conquista daquele mercado. A
inauguração foi no dia nove de novembro de 1893, com a participação de Charles
Morice, dando o suporte para a divulgação na imprensa. Quarenta e duas obras
são expostas, com as molduras da preferência de Gauguin, modernas - brancas,
azuis -, para diferenciar das do Salão Oficial. Um objetivo ele conseguiu,
senão o sucesso almejado: uma polêmica que mexeu com o mundo artístico e
intelectual parisiense. Realmente Gauguin já era uma presença impossível de
ignorar, com uma fama conquistada a duras penas, mas com amargura não se sentia
compreendido pelos pintores dos quais gostaria de ouvir comentários favoráveis.
A maioria das críticas foi em cima do exotismo e sexo que diziam ter explorado
da cultura maori. As obras Vahine no te Tiare (Mulher com Flor, 1892), primeiro
quadro realizado no Taiti com modelo nativo; Homem com Machado (1891); Hina Tefatu
(A Deusa da Lua e o Gênio da Terra, 1893); Ta Matate (O Mercado, 1892); Aha oe
feii? (Como, Você Está com Inveja? -1892); Vahine no te vi (Mulher com Manga,
1892); Pastoral Taitiana, 1893; Merahi Metua no Teha'amana (Teha'amana Tem
Muitos Antepassados, 1893); Manao Tupapau (O Espírito dos Mortos Vela, 1892)
não foram suficientes para convencer o público, os críticos e os artistas -
divididos quanto ao julgamento. Mas ele pretendia continuar a gigantesca obra
com o pouco tempo que lhe restava - a saúde já dando sinais de abalo, com
sintomas de sífilis. Era necessário utilizá-lo como uma preciosidade.
Na indignação com a Paris refratária aos seus
pensamentos, ainda realiza, em dezembro, uma amostra de gravuras no seu ateliê
na rue Vercingétorix, onde pintou a sala de amarelo para dar destaque às peças.
A publicidade também foi positiva e lá estiveram Vollard, Degas, Mallarmé e
outros do círculo da vida cultural da cidade. Mas lhe vem a confirmação de que
a civilização não mais o encanta. Retorna ao Taiti (outubro de 1895) e
posteriormente segue para as Marquesas, onde conclui o trabalho que precisava
realizar.
Gauguin, um artista seminal, encontrou, nas ilhas
longínquas da Polinésia Francesa, a visão do Criador que foi despertada com
lutas intermináveis e as incompreensões que vinham de um mundo civilizado;
dizia em Paris, antes de partir, que, entre "os selvagens daqui e os de
lá", preferia os que estavam no Taiti ou nas Marquesas. Libertou a
história da sua própria pintura e, conseqüentemente, a arte universal,
ampliando a cada passo, num processo crescente de beleza, de luz, de cor, de
forma, de conceitos - um encontro feliz com o que ele chamava de
"mitologia maori", que recriou com seu olhar agudo. Foi lá onde
realizou suas obras-primas, amou suas "noivas" meninas - Teha'amana e
Pau'ura - e viveu dolorosamente em luminosidade tropical. O Cubismo, o
Fauvismo, o Expressionismo, toda a geração posterior deve à nascente Gauguin,
como numa trindade com Paul Cézanne e Van Gogh, que foram os motores a influenciar
o modernismo na arte do século XX.
*
Artista plástico e escritor
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