Direita, volver: criança executada
* Por
Urariano Mota
Nas primeiras
notícias, diziam que os bandidos eram do Morro do Piolho, e com isso queriam
dizer que eles eram tão repugnantes quanto piolhos, os parasitas sujos que se
matam com asco. Essa era a sua primeira apresentação, ou representação. Depois,
que eram meninos – meninos, em lugar de crianças – para acentuar a gradação do
sentimento entre uma palavra e outra. Meninos são seres de duas pernas e dois
braços que correm nas ruas. Crianças, não, são os nossos filhos, uma graça que
amolece o coração da gente. "Deixar vir a mim as criancinhas", uma
vez falou Jesus. Então, as crianças do Morro do Piolho somente podiam ser
meninos. Mais adiante acrescentaram que além de meninos eram ladrões, bandidos,
e armados. Uns diabos precoces do crime prontos para atirar e tirar a vida de
qualquer cidadão. Caracterização completa. A partir de tais personagens a cena
do crime foi armada.
Um perigoso marginal
de 10 anos, dirigindo um carro que roubara, atirou três vezes em policiais
militares de São Paulo, e por isso recebeu a sua justa recompensa: um tiro na
cabeça. O outro menor que o acompanhava, menos precoce, pois já na idade madura
de 11 anos, escapou de morrer encolhido no banco traseiro do carro. As
primeiras informações do homicídio, quero dizer, do infanticídio, vinham assim.
A repórter da Rede
Globo nos tranquilizava: "Ainda bem que ninguém foi atingido". Ela
fala e põe a seguir uma adversativa: "Mas de qualquer maneira...".
Mas não tem mas. Essa diferenciação entre quem devia morrer e quem não já havia
sido cometida. Um habitante piolho havia sido esmagado. E a repórter, boa
repórter insensível ao escândalo do som do crash em um piolhinho, entrevistava
um digno habitante da zona sul, que passeava com um cachorrinho:
"Eles não tinham
como conseguir uma velocidade muito alta. Mas o moleque de 10 anos conseguiu se
evadir, desviar. Foi impressionante a habilidade que ele tinha em dirigir o
carro. Tanto, que eu pensei que era uma pessoa se protegendo, baixando a
cabeça. E não era. Era uma pessoa de baixa estatura, uma criança".
O repórter da tevê, em
frente à delegacia, chamou o caso do assassinato de uma "história
insólita". Primeiro informou que o menino (não a criança) tinha 13 anos. A
cobertura na imprensa, pra variar, pintava um monstro mais velho na vítima. Só
mais tarde, a idade caiu para 10. E os repórteres falaram mais, atenção: as
crianças tinham antecedentes criminais e eram filhos (o que morreu) de um
presidiário e de uma ex-presidiária. Portanto, o crime virava um autêntico CQD
de teorema na matemática. Filho de quem era, morador do Piolho, e com
antecedentes de hostilidade ao convívio social, o que esperar? César Tralli
(lembram-se das grandes reportagens em que ele aparecia como o correspondente
avançado e preferencial da Polícia Federal? – ele mesmo), lamentava com o ar
mais hipócrita que, bem, era uma pena crianças estarem envolvidas em crimes,
com tão pouca idade. Logo, que fazer? Fez por merecer. Como falou outro
apresentador, em um ato falho: "Esse exemplo que tem que ser
eliminado". Entendemos quanto.
Na Globo News os
comentaristas do Em Pauta mostraram uma indignação que nadava entre aspas,
porque o discurso foi o de lágrimas e comoção sobre o destino das CRIANÇAS
CRIMINOSAS no Brasil. Isso mesmo, um roteiro de hollywood para o assassinato de
crianças perdidas, sem salvação, do Brasil. Mas os comentaristas se desviavam
do mais importante: a violência policial, a violência costumeira da PM
paulista. E o paradoxo maior: a execução da criança se deu às 19 horas, mas só
depois de mais de CINCO horas o boletim de ocorrência foi registrado pelos PMs.
Por quê? O que fizeram os policiais de tão importante antes de apresentarem
esse caso escandaloso de assassinato? A nossa triste experiência dos relatos de
assassinatos na ditadura nos dava a desconfiança. Plantaram um revólver nas
mãos da criança, e depois plantaram uma história sobre a cabecinha do menor de
11 anos, que sob ameaça de morte declarou que o seu amigo atirava com um
revólver.
No Jornal Nacional, o
maior destaque em 3 de junho foi para a criança do Japão, abandonada pelos pais
na floresta japonesa. Está certo, é um descaso de ferir os corações
internacionais. Está certo, mas, na hora de mencionar o assassinato maior, o
grande Bonner repetiu a versão da polícia, a saber, que a criança estava
armada, que atirou nos policiais, etc etc. Ou mais precisamente:
Corregedoria da PM
abre investigação sobre morte de menino de 10 anos
Garoto dirigia carro
que tinha roubado com o amigo de 11 anos.
Mãe do menino que
morreu disse que o filho não tinha arma.
A Corregedoria da
Polícia Militar de São Paulo abriu investigação sobre a morte de um menino de
dez anos por policiais. A polícia perseguia o carro que o garoto e um amigo de
11 anos tinham roubado na quinta (2) à noite. Quando ele parou no meio da
avenida, policiais se aproximaram e apontaram as armas.
No boletim de
ocorrência, dois PMs disseram que o menino que estava na direção atirou e que
eles revidaram. A diretora do departamento de homicídios diz que não era
possível ver quem estava dentro do carro porque os vidros eram
escurecidos".
Notem o preciosismo: a
delegada do DHPP contou que a polícia não sabia que um menor dirigia, porque o
vidro fumê do carro estava levantado. A contradição é clara com o depoimento de
um morador visto nas primeiras reportagens. Mas é digno de registro que
estávamos diante de um supermenino:
"Segundo a
delegada, o garoto que acompanhava o menino morto depôs duas vezes à polícia
nesta sexta. Ela leu o depoimento do garoto, que tem 11 anos. Ele teria dito,
em depoimento, que eles foram alertados para que parassem e que seu amigo não
obedeceu e efetuou dois disparos de dentro para fora enquanto o carro estava em
movimento e uma terceira vez após baterem". Nada desse roteiro de fantasia
medíocre causava espanto. Se para uma adulto é difícil manter uma mão no
volante enquanto com a outra atira, imagine-se para uma criança de 10 anos. Mas
nada disso era considerado, à semelhança dos processos de culpa em uma inquisição.
Esse é um terreno onde a lógica não tem razão. E detalhe infernal, segundo a
delegada: "O menino usava uma luva para dirigir motocicleta em uma das
mãos. A luva foi colhida para ver se tem algum resquício de pólvora".
Essas coisas, esses
relatos eram divulgados sem sequer uma nota de repúdio da ética ou da
sensibilidade. Na onda fascista que invadiu o Brasil, que vem na crista do pior
congresso e do golpe contra o voto universal, a indignação virou um sentimento
démodé. Os comentários nos sites eram um primor, perdoem a macabra antologia:
"Carro roubado e
os policiais que estão errados? A mãe está chorando por quê? Abandonou o filho
à própria sorte na rua. Quem não educa chora. Apontar uma arma para subtrair
algo configura incontestável 'grave ameaça'! Esses garotos cometeram ROUBO e
não 'FURTO' como está descrito na reportagem! É uma pena que não tenham
eliminado os dois, fatalmente o outro vai matar alguém algum dia".
Os comentários
fascistas se completavam com as reportagens, como aqui.
"O comandante-geral
da Polícia Militar (PM) de São Paulo disse que a reação dos policiais que
mataram um garoto de 10 anos na região do Morumbi, zona sul da capital
paulista, foi legítima e proporcional. Para o coronel Ricardo Gambaroni, era
uma situação de confronto e os militares não tinham como saber se dentro do
carro havia crianças ou bandidos fortemente armados... O governador de São
Paulo também falou nesta segunda-feira sobre o episódio. Geraldo Alckmin (PSDB)
afirmou que o fato do menor morto estar armado e ter atirado contra a polícia
não pode ser desprezado. Ele disse ainda que vai aguardar as investigações para
comentar melhor o caso".
Estava tudo muito bem,
um bandidinho miserável havia sido morto, até o momento em que se confirmaram
as suspeitas da mentira dos relatos mostrados até então. Em 7 de junho
soubemos: Em nova versão, colega de 11 anos diz que Ítalo não estava armado.
"O menino de 11
anos que presenciou a morte do garoto Ítalo, 10, durante perseguição policial
na região do Morumbi na última quinta (2) apresentou uma nova versão do suposto
confronto com PMs.
Agora, ele disse que
só os policiais atiraram e que nem ele nem seu colega estavam armados. Afirmou
que o revólver calibre 38 atribuído a Italo foi 'plantado' pelos PMs para
justificar a ação....
'Com essa versão, os
indícios de execução sumária cometida pelos PMs ficam mais fortes. Uma criança
de 10 anos não teria condições de dirigir um veículo, estando com uma arma na
mão e ao mesmo tempo abrindo e fechando o vidro pra fazer disparos', disse o advogado
Ariel de Castro, membro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos
Humanos)"
Agora se sabe. Mas por
que a saudável desconfiança diante de mais uma execução de marginalizados não
percorreu as reportagens? Por que não pesquisaram, colheram elementos que
confirmassem ou não que um supermenino atirava e dirigia ao mesmo tempo?
Simples. Matar uma criança deixou de ser escândalo. Ou melhor, matar um menino
do Piolho é menos que nada. Merece aplausos. Eis aí um feito para dar medalhas
aos bravos que tiram da vida o lixo desses meninos.
*No Diário de
Pernambuco de 12 de junho de 2016.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Que tristeza, que história escabrosa, para lá de bem contada.
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