domingo, 8 de maio de 2016

Sujeito Zero (12)



* Por Sergio Vilas Boas




Seu Edmundo e Anita entram no Rei do Kibe, onde os petiscos são honestos e a cerveja, gelada. Decorre um intenso movimento de gente falando alto, uma confusão de interjeições, impropérios, brincadeiras de mau e de bom gosto, risos forjados e espontâneos.

Seu Edmundo respeita a es­colha de Anita. Por mais impróprio que o local pareça, ele está acompanhado. E ambos têm a sorte de conseguir um lugar no balcão, debaixo de um enorme ventilador, porque até os azulejos suavam.

O atendente recolhe gar­rafas, copos e pratos. Esfrega um pano úmido encardido no extenso balcão de aço inoxidável irregular, pontuado de suaves amassados, como se tivesse estado sob chuva de granizo. Rodeando-o, assentos de madeira fixos por uma estrutura de ferro. A maioria dos freqüentadores são homens. Muitos parecem estar ali há dias.

- Como vão as coisas no banco?
- Indo.
- O gerente que me atendeu na porta da agência é o tal?
- O próprio.
- Banco só pode ser um saco.
- Comigo ele não mexeu. Ainda.
- Pior eu, que fui demitida (Anita suspira.).
- Sabia que você não veio simplesmente me ver.
- A gente não precisa ir tão depressa.

O balconista pergunta qual cerveja querem, como se a escolha do que beber estivesse implícita desde o momento em que se sentaram. Resta dizer a marca da cerveja. Mas Seu Edmundo pede um guaraná, contrariando as tendências.

- Parou de beber mesmo, hein?
- Mas você pode pedir o que quiser.

O atendente pergunta o que vão comer. Anita vacila, não devia ter nem um centavo na bolsa. O pedido do que comer, entre outras coisas, também correrá por conta de Seu Edmundo.

- Dois quibes quentes, dos que saíram agora. (Ele intervém; e coloca o maço de cigarros sobre o balcão junto ao isqueiro Zippo falsificado no Paraguai que Inês lhe dera de presente; Anita faz um comentário aparente­mente sem importância e tardio.)
- Olha, Ed, estou sem dinheiro no momento.
- Aqui eles aceitam vale-refeição.
- Você continua o mesmo generoso, o mesmo mão-aberta.
- Por que te demitiram? (E faz um muxoxo.)
- Alegaram corte de despesas.

O balconista traz as bebidas. Seu Edmundo está com a garganta seca. Derrama o copo de guaraná espumante garganta abaixo. Anita pede outro cigarro. Continua tensa, confusa, ávida para esmiuçar o assunto. Seus problemas têm prioridade, sempre.
- Então é o seguinte: todo mundo está topando qualquer parada, pegando o que pintar. Se eu fosse sozinha, Ed, tudo bem, sozinha sempre me arranjei, sempre segurei a barra, mas não sou, tenho o Tiago, você sabe, e ele já está na idade de entrar pra escola. Hoje fui fazer um orçamento do material escolar dele e quase desmaiei com os preços.

A referência dela ao filho pode azedar a noite. Já era tempo de ela saber o que a paternidade representa para Seu Edmundo. A paternidade de um menino, diga-se. Ele não teve um menino, como sonhou.

Anita sabe também o quanto ele está carente e, portanto, manipulável. Óbvio que dormiam juntos de vez em quando. Mas a trajetória da mão conduzindo o cigarro até a boca indicava o estado de tensão dela. Tremura visível, não para menos. Além de tudo, foi preciso sussurrar:
- Estou grávida.

O balconista deixa sobre o balcão um pratinho de metal com dois quibes gran­des e alguns guardanapos de papel.

Quando Seu Edmundo era surpreendido por alguma informação, soltava alguma frase desconexa a fim de desviar o curso da conversa; uma que não deixasse suspeitas de que ele na verdade não tinha era entendido a dimensão do que o interlocutor lhe dissera; ou fingia desimportância palitando os dentes com as unhas; ou esfregava a ponta da língua no céu da boca.
- Você devia levar essa firma na Justiça do Trabalho. (Ele diz.)

Encontros entre Seu Edmundo e Anita eram duelos de sentimentos feridos, não traduzíveis com os vocábulos listados pelos dicionários de língua portuguesa. Se fosse movido a impulsos, teria dito:  Está grávida, sei. E daí?
- Coma seu quibe senão esfria, Anita. (E virou o copo tulipa com guaraná espumante, que escorre devagar, refrescante. Pre­cisa desta pequena pausa para respirar e tudo o mais.)
- O que eu quero te pedir depende de uma promessa, Ed.

A propósito, ele expira a fumaça do Continental e aguarda. Anita joga seu toco de cigarro no chão, amassa-o com o salto e passa o lado de fora da mão no rosto. Está mais angustiada do que se pode imaginar.
- Olha pra mim, Ed.
- O que é?

O atendente encostado à chopeira com a mão na torneira bisbilhota. Quando o olhar dele cruza com o de Seu Edmundo, este passa a procurar outro ponto –  o teto, o ventilador, a porta da rua. Ágil, o sujeito equilibra a quantidade de es­puma dos copos.
Seu Edmundo tem de repensar seu papel no drama de sua namorada. É duro enxergar a autenticidade dos valores dela. Até pode ser mesquinharia ou inveja, mas num momento como este é preciso levar em conta o tipo de relacionamento dos dois.

Anita não pega o guardanapo que Seu Edmundo lhe oferece. Ele parece constrangido com os arredores, e tudo prossegue como sempre. Pousa a mão nos ombros dela e massageia-os levemente. A essa altura, qualquer gesto amigo a comoveria. Seu Edmundo não é um idiota isento de malícia. Seus estratagemas emocionais eram precários, é verdade, mas suas necessidades físicas são normais, e podem falar mais alto.

Os olhos de Anita estavam ligeiramente úmidos, o que os deixava ainda mais brilhantes. É uma mulher vaidosa, produzida. Seu Edmundo nem se deu conta de certas peruagens que o caráter dela revelava. Ela era capaz de multiplicar seu poder de sedução conforme os propósitos.
- Estou precisando de um empréstimo. Assim que eu arrumar uns bicos, aproveito e pago também aquele outro galho que você me quebrou um tempo atrás, lembra?

Conselhos ditos a essa altura soam irônicos. Mais tarde, talvez. Numa situação de deses­pero, nunca se sabe o que somos capazes de fazer. Ela pega a mão dele com carinho. Pele encerada, sedosa de quem há muito não transporta pesos.

Ela sorri e deixa a outra mão aterrissar sobre a perna do parceiro. Eles se misturavam com dificuldade, mas havia uma química. O curioso é que, apesar disso, seus corpos se comunicam bastante bem. O nó estava nas palavras. Pode-se dizer que as palavras foram um problema para Seu Edmundo, principalmente com mulheres.

Anita raspa as unhas na calça dele, na altura da coxa direita. A princípio ele não presta atenção nos movimentos dela. Também não se desvia daquele olhar voraz que o vislumbra como alternativa imediata. As ações das unhas excitam-no. A tal contaminação se alastrava por todo o seu corpo. O descompasso, a carência, o fuso horário, a fome. A fome.
- Pode ser em cheque? (Ele pergunta.)
- Tendo fundos... (E suspira aliviada.)

Seu Edmundo saca do bolso traseiro da calça a carteira de couro preto amarrota­do, que abriga também o talão. Abre-o sobre o balcão e preenche. Anita o acaricia. Tudo podia não passar de convite para um brinde particular, mas não é o caso.

Eles têm lá seus códigos, como qualquer casal fortuito. Por isso em certos momentos falta a ambos coragem para um tête-à-tête mais revelador. De soslaio, Anita contempla a bela caligrafia de Seu Edmundo no papel dourado do cheque. O que interessava a ela, no entanto, era o valor.
- Pra que esse dinheiro, Anita?
Ela não respondeu. Dobrou o cheque ponta com ponta, frisou e guardou na bolsa.
- Valeu, Ed. Valeu.
Como ele jamais perguntava a mesma coisa duas vezes, o silêncio dela resolveu a questão. Mas daquele ponto em diante era ele quem mandava, e nenhum dos dois pretendia desperdiçar mais tempo.

Às 20h18 (eles passaram somente 35 minutos no local) o balconista tirou a caneta presa na orelha e marcou xis nos quadrinhos de refrigerante, cerveja e quibe. Antes de entregar a conta, deu-lhes uma encarada molenga, de cima a baixo, seguida de uma suspicaz intenção de rir, que não passou da intenção. De qualquer modo, o desagrado apressou a liquidação da conta.

Enquanto Seu Edmundo destacava o vale-refeição, Anita retocou o batom aberrante. Recobrou aquela sua nobreza suburbana, embora já desgastada. Quanto a ele, deve estar se sentindo um garoto que nunca fez amor, aquele receio de não saber como começar ou terminar. Ainda por cima, saiu do Rei do Kibe com a sensação desagradável de desocupar seu assento tendo outro sujeito já preparado para ocupá-lo.

***

Mais tarde ele se extraviou pelas ruas. Não percebia o movimento urgente de pessoas, o ar poluído e a es­curidão como novidades bem-vindas. Parecia haver uma escuridão diferente no céu aquele noite. Um estranho e tênue tom lilás preenchia as entranhas do breu.

Suas pupilas logo se adaptaram ao novo estado de espírito, mais palpável, mais masculino. O passo era trôpego, as pernas cambaleavam, talvez pelo tremendo esforço físico que acabara de empreender. A alma, no entanto, volta lavada, cheirando a sabonete Lux do Hotel Signus, onde passara algumas horas com Anita depois de guaranás, cervejas e quibes.

No apagar das luzes, ela anunciou que estava grávida e por isso precisava da ajuda do namorado, embora este não tivesse nada a ver com a gravidez e sequer fora informado sobre o que sua acompanhante pretendia fazer com o cheque de não sei quantos cruzados novos.

Ironia das ironias, o fato principal era que Anita podia ter outro garoto, se qui­sesse. Seu Edmundo, que sempre quis um menino, continuaria sem ter um. Em parte por causa de sua impecável teimosia. Ele só admitia gerar um filho homem com Inês, nenhuma outra. Como ele e Inês tiveram apenas filhas - Ava, Clara e Alma - Seu Edmundo, já naturalmente sumido, se diluiu em meio a mulheres que não lhe deram a mínima.


* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.





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