domingo, 8 de maio de 2016

Jeremias Astor


* Por Oscar Dias Correa


Mas não era possível descrever toda a fauna humana que Brasílio encontrou na Casa do Povo, como chamava a Câmara. Eram cinqüenta e quatro figuras diversas, cada qual com um jeito, uma cara, assentando-se ou se levantado ao comando da intimação do presidente e dos líderes.

Muito mais proveitoso seria contar-se, por exemplo, o que se passava na Secretaria, de onde saíam prontinhos, estandardizados, os pareceres das Comissões. Na maioria, é claro. Na taquigrafia, onde os taquígrafos faziam esforço tremendo, coisa comparável aos trabalhos de algum valentão mitológico, para pôr em ordem as palavras do Inácio Patranha ou do Sinésio Sobrense, ditas de envolta ao emaranhado de idéias confusas, dignas do enunciado; ou dos cochichos da bancada da imprensa, à qual os deputados dedicavam mais atenção do que à fala do presidente.

Você sabe, leitor amigo, o que é a bancada da imprensa? Pois vou dizer-lhe, em poucas palavras: são uns senhores que ficam, em geral, defronte dos deputados. quando eles falam, conversam ou estão calados; que tomam, ou não tomam notas em papel sem pauta, de preferência; que trocam idéias entre si, muito cordialmente, sem dar nenhuma idéia nova em troca da que não recebem; e que, no dia seguinte, a gente toda fica sabendo da opinião que tinham do que se passou na sessão a que assistiram, ou que não tinham e a direção do jornal entendeu que era bom ter.

Entendido? Sim ou não, é isto. E isto quer dizer: "manchetes", "sueltos", artigos de fundo, editoriais, "barrigas", boatos, e tudo o que você vê diariamente, com espantosa regularidade nos jornais. E nem sempre no mesmo sentido, ainda que sempre com bons fundamentos.

Para esses homens se fazem os discursos nas assembléias, ainda que não haja para eles saudação regimental nos cabeçalhos, como não há para os eleitores. A eles se levam todas as notícias: as reais, os boatos, e os "consta", variedade destes últimos. A eles se dão as explicações das palavras menos pensadas, ou que se julga nem o foram.

E a eles, no dia seguinte, se procura catequizar, se a notícia da manhã não foi favorável. E, conseguindo-se ou não, sempre amigos, hem? Sempre amigos.

Na Imprensa, ou antes, no lugar onde se assentava a bancada da imprensa, havia coisa mais interessante.

Era uma curiosa (se me permite) personagem que se intitulava jornalista, em verdade um "publicador" de escritos (não sei se os escrevia por si próprio) em afamado jornal da Metrópole.

Curiosa. Não há dúvida. Para um retrato, bem entendido. Nunca para uma prosa. Mesmo porque se conversava com ele, quando ele queria, e não a gente; sobre o que ele queria; enquanto queria; enfim, enfim, não lhe digo nada. Conclua.

Era alto, esguio, magro, ossudo mesmo. Tinha uns cinqüenta e tantos anos. Talvez sessenta. Talvez mais. Por que não setenta? Faces enrugadas, morenas, flácidas, desbotadas, macilentas. (Perdoe-me, leitor, se carrego as tintas.) Os anos, ou a conversa, que queria sempre ao pé do ouvido, haviam-lhe encurvado os ombros, numa semicorcunda nada simpática.

A gravata borboleta preta, permanentemente, e sempre a mesma, os encardidos contrastando, aqui e ali, com o puído das dobras, realçava a brancura, às vezes duvidosa, do colarinho de pontas viradas, escolhido de propósito para quem não deixava descansar a saliência do corpo hióide, como chamam os doutores ao pomo de Adão, ou maçã de Adão, ou nó de Adão, nó de garganta, no da goela, ou, simplesmente, gogó.

Tinha predileção pelo marrom. Urucubaca? Mera coincidência, dessas que a vida planta, toda hora, à frente dos homens. E dava-lhe sorte, a ele, a cor da roupa. Ou não seria ela.

Peso, diziam, que dava aos interlocutores, que sempre os achava, por mais voltas dessem, cruzando passeios para o outro lado da rua, fazendo que não o viam, simulando pressa e mais tentativas vãs.

Estava armado de uma bengala, quando Brasílio o viu. E todas as outras vezes. E de uma pasta debaixo do braço, sob a pressão dele, braço, e da bengala. E trajava também um colete branco, bem usado, que também era permanente.

Conservador, parecia, ainda que se dissesse liberal. Mas isso não vem ao caso, porque era conservador nos trajos e liberal em política.

Tipo merecedor de mais reparos.

Nariz judaico, o mais que se puder imaginar; olhos empapuçados, com duas verrugas, uma de cada lado, simetria perfeita; pés compridos, metido num verniz surrado e pontudamente ofensivo, meias não se viu nunca, não que não usasse, mas porque jamais cruzava as pernas, mesmo sentado.

Sempre de pé - era um homem de atitude.

Brasílio não tivera sorte com ele. Não lhe gostara da apresentação física. Nem se interessara por suas conversas. E o resultado é que um dia, solicitado a conduzi-lo até Palácio para uma audiência, Brasílio esquivou-se. O homem - chamava-se Jeremias Astor - apertou-o; Brasílio escusou-se, mas, encantoado, amassado, cuspido (na conversa, Jeremias perdigotava o interlocutor, agarrava-o pela gola do paletó, puxava-lhe a gravata, a manga, dava-lhe tapinhas de repelão e de aconchego etc.), Brasílio acabou negando-se a levá-lo.

Sofreu, então, descompostura como não esperava, nem merecia. O homem desancou-o, oralmente. E mesmo com a bengala nas mãos argumentou, algumas vezes, em tom suspeito.

Brasílio, calado e pálido, ouviu o destampatório. E quando pôde retirar-se, conquistara um desafeto - e algumas indulgências para o juízo final. Justamente.

(Brasílio, capítulo LXXIV, 1968).

* Jurista, político e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras.



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