Os bailes mascarados
* Por
Martins Pena
Os homens passam
descuidados durante séculos por diante de montanhas em cujo seio se ocultam
imensos tesouros, e nem os passados exemplos lhes fazem bater o coração de
desejo de as explorarem, e nem a cobiça lhes desperta o ânimo, até que um mais
feliz ou audaz, por acaso ou coragem, descobre uma partícula desse escondido
tesouro; então acordam todos como de um longo sono, lastimam o tempo perdido, o
que era indolência torna-se em agitação, e todos, obedecendo a um só
pensamento, atiram-se insôfregos na exploração da montanha, e cavam-na por
todos os lados, cruzam as suas entranhas com minas e galerias, e o ouro que
delas extraem recompensa de sobejo os seus trabalhos e fadigas.
É esta a história dos
bailes mascarados entre nós.
Há muitos anos que não
se ignora por cá que nos teatros da Europa dão-se bailes mascarados nos dias do
carnaval, e que os empresários desses divertimentos colhem avantajados lucros;
e no entanto ninguém se havia lembrado de imitar esse uso, tendo tão bons
exemplos para seguir. Acresce mais que o jogo do entrudo era reputado bárbaro e
perigoso, e como tal a população sensata o queria ver banido dos nossos
costumes; as autoridades policiais iam de acordo com esse voto, e, apesar
dessas circunstâncias favoráveis, não se movia uma só pessoa a fim de dar
impulso a esse novo gênero de espetáculo e explorar a curiosidade pública. Uma
resposta davam quando se estranhava essa indolência: “A nossa população,
diziam, não está ainda educada para tais divertimentos; é uma má especulação.”
Assim pensavam também os homens ao passarem por junto da montanha: “Aqui,
murmuravam entre si, não há ouro, e cavar minas seria uma má especulação.” E
aqueles tanto se enganavam como estes. Ouro havia a ajuntar na montanha e no
teatro; só faltava o primeiro impulso, o exemplo animador que guiasse os
indecisos.
À Sra. Delmastro coube
a glória de abrir esse exemplo. Ou pelas reminiscências que tinha da Europa
donde viera, ou por cálculo e coragem, julgou que os bailes mascarados nos
teatros podiam lhe ser lucrativos, e, sem temer os obstáculos e o perigo das
inovações, ofereceu-nos os primeiros bailes no Teatro de S. Januário no
carnaval do ano passado.
Estavam dados os
primeiros passos; a especulação tinha sido feliz, caíram os obstáculos, e
cresceu instantaneamente o desejo da imitação.
[...]
Serão os bailes
mascarados capazes de substituir o entrudo e fazê-lo desaparecer dos nossos
costumes? É esta uma questão difícil de responder-se.
O entrudo é um jogo
bárbaro, pernicioso e imoral. A autoridade, que tem o dever de zelar sobre a
moral e a tranqüilidade pública, assim pensa, e há anos a esta parte que se
afadiga em publicar ordens nos jornais para que ele cesse, ameaçando os
infratores com multas e prisões; mas não e fácil extinguir com ordens de
jornais e algumas patrulhas usos arraigados entre o povo por espaço de anos.
Antes dessas proibições o povo jogava o entrudo consigo em toda a liberdade nas
ruas e praças públicas; depois dessas proibições subiu ele para as janelas e o
joga com as autoridades nomeadas para o evitarem. Essas cenas ridículas, a que
todos nós temos presenciado uma ou mais vezes, são de péssimo exemplo.
Houve uma câmara
municipal que compreendeu, e com muita razão, que este meio de que se tinha
lançado mão era ineficaz, e que um divertimento popular só se substitui por
outro mais popular, e prometeu um programa de bailes e danças mascaradas.
Meterem a ridículo a idéia, e seus autores recuaram diante dos motejos. É de
lastimar que não tivessem ânimo os vereadores para prosseguir no seu intento. A
experiência mostrou como seria bem recebida a inovação.
Os bailes mascarados
aclimaram-se entre nós graças a uma mulher; agora compete à autoridade
sustentá-los, porque só com eles pode combater o entrudo. Não julgue porém que
da sua parte só basta fazer regulamentos para que os bailes principiem às oito
da noite e acabem às três, e que os máscaras sejam respeitados e não digam
insolências. Não: é preciso que a sua intervenção seja mais ativa, e direi
vital, e que as suas vistas alcancem mais longe.
Uma das causas do
furor do entrudo é a privação em que se vê o povo durante um ano, esperando
pelos três dias: aplique-se este meio aos bailes; sejam proibidos durante todo
o ano; negue-se-lhes licença, quaisquer que forem as alegações que
apresentarem, e designem-se unicamente para eles certos dias do carnaval. Além
dessa medida, outra devia se tomar. Os bailes nos teatros são dispendiosos, e
nem todos podem comprar bilhetes de entrada; a maioria da população fica deles
excluída. Organizem-se, para remediar essa falta, danças mascaradas e correrias
burlescas pelas ruas e praças, que o povo as seguirá, esquecendo-se da água e
do polvilho.
Outras muitas
providências poderíamos lembrar; porém tememos já ter ultrapassado os limites
permitidos a um folhetim de teatro. Desculpa pois pedimos, e deixamos a quem
compete dar as providências que julgar acertadas.
Temos, sem querer,
falado sério em objeto de tanta folia e galhofa: é que encarávamos o fim,
esquecendo-nos dos meios, e que talvez levássemos em vista esboçar o começo da
história dos bailes mascarados no Rio de Janeiro.
Eia!... os bailes nos
chamam. Pelas portas desses imensos salões improvisados soltam-se torrentes de
luz e harmonia; por todas as ruas correm apressados, e às vezes apupados,
imensidade de mascarados; aqui e ali vêem-se pendurados das janelas trajes
diversos, como convidando os passageiros a entrarem para se travestirem;
desusado motim e alvoroço ecoa pelos ares; o delírio também de nós se apodera:
tomemos uma máscara, um dominó, por ser o mais cômodo e leve, e corramos para misturarmo-nos
com a multidão e gozarmos dos seus prazeres, e presenciarmos os seus folguedos.
Onde entraremos
primeiro?... Difícil escolha!... Preferência daríamos sem hesitar à Reunião
Campestre; mas tememos ofender susceptibilidades levando às páginas de um
jornal público a descrição de um baile particular. Permitam-me só duas
palavras: esteve magnífico!...
Entremos no Teatro de
S. Pedro. A orquestra toca a quadrilha do Ferrador. De um dos camarotes
lançamos um olhar sobre o imenso salão, que ocupa todo o espaço da platéia e de
grande parte do cenário; a ária é grande para as correrias e danças dos
mascarados; sua iluminação é suficiente, mas não brilhante como podia ser; no
fundo à esquerda, em um coreto, a orquestra executa deliciosas quadrilhas e valsas
que agitam e enlouquecem a multidão colorida e variegada. É de sentir a falta
do outro coreto com banda militar, que havia no ano passado, para tocar
sinfonias nos intervalos das danças. O silêncio da música em um baile mascarado
fá-lo perder um dos seus prestígios. O sussurro e zumbido da multidão alegre é
o melhor baixo contínuo de uma orquestra de carnaval; mas esse sussurro, só e
desacompanhado, torna-se incômodo; e, além disso, o som dos instrumentos
encobrem muitas palavras que ou não se quer que se ouçam, ou não se devem
ouvir.
Extraordinário e
brilhante espetáculo é o de um baile mascarado! Todas as idades e povos aí têm
seus representantes; os mais extravagantes e fantasiados trajes, as mais
disparatadas anomalias aí se encontram; e toda essa aglomeração informe
agita-se, corre, salta, brada, forma grupos que representam séculos, e o mesmo
espírito a anima e a lança no turbilhão da dança. Turcos e cristãos, idólatras
e judeus, só das crenças conservam os trajes: o carnaval os converteu à religião
do prazer. Viva o carnaval!
Com um ano de
existência não podem ainda os bailes mascarados chegar entre nós àquela
perfeição que os torna na Europa tão agradáveis e únicos no seu gênero; mas
para lá iremos caminhando. O enredo, essa alma dos mascarados, quase que nos é
desconhecido; sem ele torna-se o baile mascarado simplesmente uma sala de dança
tumultuosa, e perde aquela inquietação de espírito e cenas jocosas que sucedem
pelo incógnito das personagens e curiosidade que despertam. Os máscaras entre
nós são (perdoem-me a expressão) geralmente insossos: uma ou outra exceção
aparece. Os seus diálogos reduzem-se a bem poucas e insignificantes palavras.
Lá passa um por junto de pessoa que não quis mascarar-se e traz a cara
descoberta, e diz-lhe: - Adeus, como estás? Eu te conheço. - Não admira,
responde-lhe esta, não trago máscara. - E tu me conheces? torna-lhe o máscara.
Não. - Pois eu te conheço. E dando-lhe as costas, vai repetir a todos que
encontra estes tão espirituosos ditos. Outro, ao passar por um amigo, exclama:
“Como estás? - Bom. - Depois que te deitei ao pasto nunca mais te vi.” E, muito
satisfeito com a bonita graça que disse, faz uma pirueta e safa-se. Porém os
mais intoleráveis são aqueles que procuram envergonhar os conhecidos que
encontram.
“Olá! sicrano, gritam
com toda a força da vozinha de empréstimo, tu não vais pagar aquela conta na
Rua da Quitanda? Olha que o lojista quer te mandar citar”. Há sempre quem se
ria nessas ocasiões, e a pessoa agredida toma o prudente partido de calar-se e de
mudar de lugar. Estas e outras cenas e gentilezas sem sal nem graça repetem-se
milhares de vezes em uma noite. Já dissemos que há algumas exceções;
infelizmente porém são poucas.
Os indivíduos
mascarados dividem-se em duas grandes classes muito distintas: os que se
mascaram para não serem conhecidos e os que se mascaram para o serem. Os
primeiros andam retirados e silenciosos, gozando do prazer do incógnito no meio
de amigos: estes são inofensivos e só servem de ornamento ao baile; e os
segundos atiram-se desesperados por entre a multidão, dizem palavras
indiscretas até que sejam conhecidos, para que se lhes admire o bom gosto do
trajar. Felizmente há uma outra pequena classe intermediária que não participa
nem do acanhamento da primeira nem da sem-cerimônia da segunda, e esta é que
constitui o verdadeiro centro do baile.
Há uma coisa muito
notável a observar-se. Regra geral: toda a máscara bonita encobre cara feia, e
vice-versa. Isto é fácil de explicar-se: os feios querem um dia ser bonitos,
ainda que não seja senão mascarados; e os bonitos querem experimentar os
efeitos de uma cara feia. É decerto uma consolação para um homem ou para uma
mulher maltratada pela natureza poder ocultar por algumas horas, debaixo de
linda aparência, suas horríveis e horrendas cataduras. Pobre gente! tenham ao
menos esse desabafo! Quantos conhecemos nós que de boa vontade e coração
trocariam a cara que Deus lhes deu pela máscara que compraram!
[...]
Mais duas linhas e
terminaremos. Estes três salões de baile, o Teatro de S. Pedro, o Teatro de S.
Francisco e o Tivoly, estiveram constantemente cheios; mas se pelo número dos
concorrentes quiser alguém calcular os seus rendimentos, engana-se
redondamente. Houve uma troca de senhas prodigiosa. Muitas pessoas conhecemos
nós que, tendo comprado um bilhete por 1$ no Teatro de S. Francisco, aí se
demoraram até meia-noite; depois, saindo, trocaram as suas senhas pelas do
Teatro de S. Pedro, e para este entraram de graça; as duas horas foram para o
Tivoly, e, graças ao mesmo manejo, também para este entraram novamente de
graça, tendo assim corrido três bailes, ouvido três orquestras, visto mais de
quatro mil pessoas mascaradas e desmascaradas, dançando, pulando e gritando
durante oito horas, pela módica quantia de dez tostões! Há muito tempo que os
empresários de divertimentos públicos fintam ao povo; chegou enfim a vez deste
de fintar também os empresários; e por mais esta razão, gritaremos com força e
pedimos que gritem conosco: Viva o carnaval!
Prometemos que
falaríamos neste folhetim dos contratos-gêmeos das duas primas, modelos de
sentimental e fraternal amizade; pedimos porém desculpa se não cumprimos esta
nossa promessa, por falta de tempo: em outro número o faremos. Pela face que levam
as coisas esperamos fazer um elogio à diretoria, mas um elogio magno e machucho
como ela nunca chuchou, pela energia que tem mostrado. Custou! mas antes tarde
que nunca.
16 de fevereiro de 1847.
(Folhetins. A semana
lírica)
*
Teatrólogo, membro da Academia Brasileira de Letras.
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