O professor no pós-golpe
* Por
José Ribamar Bessa Freire
O golpe não foi bem a
troca de Dilma por Temer no processo comandado por um réu no Supremo Tribunal
Federal (STF). O golpe não está só nesse ministério sem mulheres e sem negros -
ainda bem que não tem mulher nem negro nessa quadrilha! O golpe não é a
nomeação de sete ministros envolvidos na Lava-Jato, que assim adquirem direito
a foro especial, contando com o silêncio cúmplice da mídia, a omissão
envergonhada dos paneleiros e a data venia do Judiciário que faz bocorum
sirizorum. O golpe não é sequer a ameaça concreta de retrocesso nas políticas
sociais.
Então, onde está o
tutano do golpe?
O golpe reside,
sobretudo, no fato de que o espaço de protesto contra tudo isso fica cada vez
mais reduzido, pois a troca de guarda, da forma como foi feita, estimulou uma
escalada contra a democracia duramente conquistada, visível, entre outros, nos
projetos agora fortalecidos que amordaçam o professor em sala de aula e que
anteriormente já tramitavam na Câmara de Deputados e em outras instâncias
legislativas.
Todos esses projetos -
segundo matéria da Folha de SP assinada por Daniele Belmiro e João Pitombo -
proíbem na escola o que consideram como "doutrinação ideológica" em
temas políticos, religiosos e sexuais, o que inviabiliza aulas de filosofia, de
história, de sociologia. Um deles, de autoria do deputado temerário Ricardo
Nezinho (PMDB, vixe, vixe) de Alagoas, acaba de ser transformado em lei
promulgada na segunda-feira (9), depois de aprovada pela Assembleia
Legislativa, por unanimidade, que é sempre burra, como bem aponta Nelson
Rodrigues.
A direita Brucutu
O professor, que já é
erodido e mal pago, com salários indecentes e condições precárias de trabalho,
agora sofre a censura. Se desobedecer a lei, será punido de acordo com o
tamanho do "crime", podendo até mesmo ser demitido do serviço
público, uma das penas estabelecidas. Nezinho, que é veterinário em Arapiraca
(AL) e que entende de Educação tanto quanto Temer de Física Quântica, quer
colocar uma canga no professor, como se faz com um boi.
Por enquanto, Alagoas
é o primeiro estado a dar o "golpe dentro da lei", mas projetos
similares tramitam nas assembleias legislativas de oito estados - SP, RJ, RS,
PR, ES, GO, CE e Distrito Federal. A ascensão do inquilino do Jaburu e da
direita brucutu contribui para que mais outros estados e municípios sigam esse
exemplo, sem contar com o Congresso Nacional.
As Câmaras de
Vereadores de 17 municípios, entre os quais várias capitais como São Paulo, Rio
de Janeiro, Recife, Teresina, Palmas, Curitiba e Campo Grande, copiaram os
projetos para serem adotados como lei municipal, com modificações aqui e ali.
Campo Grande (MS), por exemplo, aprovou
uma espécie de "delação premiada", criando um canal para
denúncias anônimas feitas por alunos ou por seus pais, se acharem que o
professor não apresentou "de forma justa as principais versões ao tratar
de questões políticas, socioculturais e econômicas". O projeto não define
o que entende por "forma justa".
Todo esse movimento
está sendo orquestrado pela organização "Escola Sem Partido" formada
por "estudantes e pais preocupados com a contaminação político-ideológica
das escolas". Segundo a FSP, "a entidade afirma que a educação moral,
sexual e política cabe à família. E argumenta que o professor não é um
educador, devendo limitar-se a passar conteúdos das disciplinas de forma
isenta", seja lá que diabos signifique "forma isenta". Essa
forma coronelista de ver o aluno, nem no Estado Islâmico! Os ossos de Paulo
Freire estão se revirando no túmulo.
Na Câmara de
Deputados, em Brasília, já circulam quatro anteprojetos a serem votados pelos
mesmos parlamentares que derrubaram Dilma invocando a tradição, a família, a
propriedade e até Deus. Os quatros são farinha do mesmo paneiro. Um deles prevê
a distribuição de cartazes em todas as escolas do país, com mensagens
advertindo que "o professor não fará propaganda político-partidária em
sala de aula nem incitará os alunos a participar de manifestações".
Arariboia, Zumbi, Tiradentes, Olga Benário e tantos outros lutadores sociais
podem cair na malha fina.
- Parece que nossos
políticos querem os alunos alienados em relação aos problemas da sociedade -
declarou o diretor do Sindicato dos Professores de Alagoas, Marcelo Silveira
Porto. Ele anunciou que vai questionar a lei, já em vigor, em uma ação direta
de inconstitucionalidade no STF, que será votada por - quem? quem? quem? -
entre outros por ministros justos, imparciais e isentos como Gilmar Mendes e
Dias Toffoli e, se duvidar, com assessoria especializada do professor
Raimundinho Nonato, de Maranguape.
Coice na democracia
Para intimidar os que
protestarem, a repressão é acionada como na ditadura militar. Na terça-feira
(10), a professora de Direito da Universidade Federal de Minas (UFMG), Maria do
Rosário Barbato, foi intimada pela Polícia Federal a prestar esclarecimentos
sobre sua militância política e suas atividades na universidade e em sindicatos
e partidos. Neste mesmo dia, a delegação de mulheres da Bahia à IV Conferência
Nacional de Políticas para Mulheres foi detida pela Polícia Federal, chamada
por dois deputados, que não gostaram das vaias recebidas pelas mulheres dentro
do avião. Eles não gostam de mulher inteligente e combativa.
O cerco está
crescendo. Na semana anterior, mulheres reunidas na Faculdade Paulista de
Serviço Social para discutir o aborto, foram interrompidas pela Guarda Civil
Metropolitana, cujos agentes ficharam as organizadores e as palestrantes.
- "É indignante
esta criminalização do movimento das mulheres. Querem que a gente tenha medo e
se sinta criminosa em falar sobre nosso próprio corpo e nossos direitos" -
disse Samia Bonfim.
O golpe - um coice na
democracia - é essa assustadora escalada contra a liberdade de expressão, que
vem sacramentada pelo truculento ministro da Justiça do interino Temer,
Alexandre Moraes (PSDB, vixe, vixe), ex-advogado de Cunha, que como secretário
de segurança de Alckmin reprimiu manifestações em São Paulo, escondeu
estatísticas sobre a crescente criminalidade e agora ameaça criminalizar a sala
de aula.
Pierre Bourdieu
adverte sobre o perigo de disseminar pelo conjunto do corpo social a mesma
visão de sociedade, onde todas as pessoas usariam palavras similares e seriam
animadas pelo mesmo pensamento. Ele cita criticamente o sociólogo George Davy
dos anos 1950 para quem a função do professor é "ensinar às crianças a
mesma língua, una, clara e imutável, para que elas vejam, sintam e percebam o
mundo da mesma maneira, edificando assim a consciência comum da nação".
O golpe é a tentativa
de criar um pensamento único, abolindo as divergências na censura e na porrada.
A pedagogia do conflito de ideias já era. A TV Globo parece que vai substituir
a TV Escola. Os paneleiros, alguns com sentimento de que foram politicamente
otários, sentirão saudades dos tempos em que podiam protestar. O golpe é não
poder bater panela. O golpe é isso. O resto é silêncio. Só se ouve o
quá-quá-quá do pato da FIESP.
P.S. - "Es como
si la resaca de todo lo sufrido se empozara en el alma" - geme o poeta
peruano Cesar Vallejo (1892-1938) em Los Heraldos Negros (1918)
*
Jornalista, professor e historiador.
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