Legítima precursora da ficção
científica
A escritora inglesa Mary Shelley foi, de fato e de direito,
a pioneira, a fundadora, a lídima precursora do gênero literário (hoje muito
popular por causa da adaptação dos principais livros para o cinema) conhecido
como ficção científica. Raras vezes tenho visto esse reconhecimento. E, mesmo
quando ele se dá, vem sempre acompanhado de algum “mas”, quando não de uma
série de restrições que considero incabíveis e até absurdas. Por que isso
acontece? Tenho convicção que se trate do velho (do enfaticamente negado, mas
persistente e cristalizado no comportamento até mesmo de muitas mulheres) preconceito
de gênero. Raciocinassem com um tantinho só de lógica e esses preconceituosos
concluiriam com facilidade que competência, criatividade e talento (literário
ou qualquer outro) nada têm a ver com sexo. Aliás, essa mentalidade machista,
teimosamente arraigada na mente de tanta gente, a de pretensa superioridade
masculina, é carente de qualquer fundamento.
O livro “Frankenstein: o Prometeu moderno”, interpretado por
muitos (presumo que pela maioria) como romance de terror, não é nada disso. É,
de fato e de direito, o precursor, a “pedra fundamental” da ficção científica.
Tem a ver com as experiências do filósofo natural e poeta do século XVIII
Erasmus Darwin (não confundir com o criador da Teoria da Evolução, Charles
Darwin), por cujas idéias Mary Shelley era fascinada. Esse médico inglês
afirmava, entre outras coisas, que em suas experiências com cadáveres, havia
conseguido a façanha de ter animado matéria morta. Outro cientista que encantava
a então jovem “projeto de escritora”, era o italiano Luigi Galvani. Esse
pesquisador, físico e filósofo bolonhês havia realizado, alguns anos antes,
estudos de bioeletricidade, ou seja, dos padrões elétricos e dos sinais do
sistema nervoso humano.
Mary Shelley explica
como teve a idéia para escrever sua história, escrita no princípio um conto
curto, que posteriormente ela ampliou para resultar na obra que conhecemos. “Eu
vi o pálido estudante de artes profanas ajoelhado ao lado da coisa que ele
tinha reunido. Eu vi o fantasma hediondo de um homem estendido e, em seguida,
através do funcionamento de alguma força, mostrar sinais de vida, e se mexer
com um espasmo vital. Terrível, extremamente assustador seria o efeito de
qualquer esforço humano na simulação do estupendo mecanismo de Criador do mundo”.
Frankenstein, para quem não sabe, não é o nome dessa espécie
de “clone” (podemos assim chamar), formado com pedaços de cadáveres, animado
por uma corrente elétrica. É o de seu criador. Ou seja, é o de Victor
Frankenstein. A criatura, antes de ser apelidada com o sobrenome de quem a
criou, era conhecida como “Adam” (em referência ao bíblico Adão). E a
qualificação que o autor dessa façanha recebeu, de “Prometeu moderno”, foi em
alusão ao titã da mitologia grega que roubou o fogo sagrado de Héstia para
dá-lo aos mortais e que, por isso, foi castigado. Foi amarrado, eternamente, a
uma rocha, enquanto todo dia uma gigantesca águia comia seu fígado, que se
regenerava, para ser comido de novo, de novo e de novo...
O livro “O último homem” também é, nítida e claramente, de
ficção científica. Só que ao invés de tratar de miraculosos avanços
científicos, como fez mo “Frankenstein”, Mary Shelley explorou o contrário. Seu
enredo sugere que, em fins do século XXI, a Medicina teria parado de evoluir.
Muito pelo contrário, tornara-se demasiadamente tímida, na verdade
ultrapassada, a ponto de não saber o que fazer para deter incontrolável
pandemia de peste bubônica que dizima a humanidade. Todavia, as obras de ficção
científica de Mary Shelley não se limitam a esses dois livros, os mais
conhecidos que publicou. Posso citar, por exemplo, o conto “Roger Dodsworth: o
inglês reanimado”, publicado originalmente em um jornal londrino em 1826, o
mesmo ano da publicação de “O último homem”.Trata-se da narrativa sobre um
homem nascido em 1629, soterrado em uma avalanche em 1660, mas trazido de novo
à vida 166 anos depois.
Outra história de ficção científica é “O mortal imortal” –
que dá título ao livro de contos em que “Roger Dodsworth: o inglês reanimado”
está incluído – datada de 1833. Trata-se do relato de “Winzi”, no dia de seu
323º aniversário. Esse personagem tomou uma substância misteriosa, preparada
pelo alquimista alemão Cornelius Agrippa, enquanto trabalhava como seu
assistente. Essa poção tornou-o imortal. Detalhe: o pesquisador citado de fato
existiu. Cornelius Agrippa (que viveu entre 1486 e 1535), foi interessado em
magia, alquimia, astrologia e tudo o que se referisse a esoterismo.
Mary trata do mesmo tema de “Roger Dodsworth” no conto "Valério:
o romano reanimado". Nele, o personagem do título, cavaleiro do tempo de
Cícero e de Catão, é despertado numa outra época, que não a sua. Confuso, tenta
compreender as mudanças da civilização e da própria matéria que faz os homens.
E Mary escreve: " (...) Mas a tentativa humana de descrever falha ante a
tremenda mudança que se deu no mundo, é verdade, durante a lenta passagem de
muitas eras (...)" Existe, como destaca, uma impossibilidade na
compreensão do mundo quando se tem uma visão relativista das épocas.
Em outro conto, com idêntica temática, a escritora reflete
sobre a força da natureza do indivíduo que, apesar de toda a conjuntura do meio
e do tempo, é a verdadeira origem do caráter. Escreve: " (...) Porque,
apesar da educação e das circunstâncias poderem ser suficientes para dirigir e
formar o material irregular da mente, elas não podem, nem criar, nem fornecer
intelecto, aspirações nobres e energia constante onde a inércia, a hesitação
nos propósitos e os desejos vis foram cunhados pela natureza (...)" Mary
Shelley, em parte, foi culpada de não ter seus reais méritos literários devidamente
reconhecidos. Embora sem parar de produzir, dedicou quase metade da sua vida à
preservação da obra e da memória do marido, o poeta Percy Bysshe Shelley, que
havia morrido em um naufrágio na Itália, em detrimento da própria produção
literária. Mas o fato é que ela foi, de fato e de direito, a verdadeira, a
lídima, a legítima precursora da ficção científica na literatura mundial.
Boa leitura.
O Editor.
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Seus argumentos são irretorquíveis.
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