Decamerão inspira livro de escritor
inglês
A pandemia de peste bubônica que a partir de 1347 varreu a
maior parte da Europa, dizimando milhões e milhões de pessoas, também foi
tratada pelo escritor inglês Geoffrey Chaucer, tido e havido como o “pai” da
literatura inglesa (o que considero um exagero). É certo que ele foi um dos
primeiros a se utilizar do seu idioma pátrio para redigir seus livros. Até
meados do século XIV, as línguas usadas na redação de textos literários eram
somente o latim (majoritariamente) e o francês. Todavia, ele não foi o único a
recorrer ao inglês. Nem por isso, diga-se de passagem, foi menos importante.
Sua obra mais conhecida – lançada, inclusive, no Brasil – é “Os contos de
Cantuária” que, todavia, ficou inacabada. Não deu tempo para Chaucer acabá-la.
Morreu antes.
Meu objetivo, porém, não é tratar de sua biografia, até
porque há fartas e excelentes fontes a respeito. É mostrar como ele tratou a
pandemia que grassava também na Inglaterra quando ele nasceu (em 1343) e à
qual, obviamente, sobreviveu. A rigor, seu livro contém pouquíssimas
referências à peste bubônica, da qual foi contemporâneo. Há uma explicação até
lógica para isso. Geoffrey Chaucer era um poeta cortesão, ligado, portanto, à
realeza da Inglaterra. E embora seus escritos contenham certa carga de denúncia
social, não lhe convinha adotar descrições explícitas e demasiado cruas.
Pudera! Se o fizesse, isso implicaria em críticas à realeza, com a qual não estava
disposto a nenhum tipo de ruptura.
“Os Contos de Cantuária” é uma coleção de histórias (duas em
prosa e vinte e duas em verso) escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer.
Seu projeto era que esse número chegasse a 116. Não deu tempo. Morreu antes, em
25 de outubro de 1400. No livro, cada conto é narrado por um peregrino de um
grupo de 29, que realiza uma viagem de Southwark (Londres) à Catedral de
Cantuária. O objetivo dos romeiros era visitar o túmulo de São Thomas Becket,
bispo católico assassinado em 1170 por partidários do rei Henrique II. A fonte
mais importante de Chaucer na composição da sua obra foi o “Decamerão”, de
Giovanni Boccaccio. Destaque-se que ele conheceu pessoalmente o escritor
florentino, com quem se encontrou, quando visitou Florença, em uma das tantas
viagens que fez.
Recorde-se que o livro de Boccaccio também apresenta uma
coleção de contos (cem) narrada por um grupo de pessoas (dez). Várias das
histórias do escritor inglês têm paralelo na obra do colega florentino.
Contudo, há múltiplas diferenças e escassas semelhanças entre as duas narrativas.
A novidade de Chaucer está no universo dos contos e dos personagens. No “Decamerão”,
os dez narradores são todos nobres em fuga da peste negra. Já em “Os Contos de Cantuária” os contadores
de histórias representam todas as classes sociais, desde o povo comum (moleiro,
cozinheiro etc.), a religiosos (monge, prioresa) e nobres (cavaleiro,
escudeiro). Cada personagem narra um conto conforme sua visão de mundo.
Na pousada, onde o grupo criado por Chaucer estava hospedado,
por sugestão do hoteleiro, os romeiros resolvem passar o tempo contando
histórias. Aquele que contasse a melhor, na opinião da maioria, ganharia um
jantar grátis. A partir desse ponto cada personagem faz sua narrativa, de
grande variedade temática, conforme a posição social de cada um. Muitos dos
relatos são precedidos por um pequeno prólogo, e muitos são comentados entre os
personagens depois de contados. Chaucer refere-se mais diretamente à epidemia,
pelo que pude apurar, em apenas dois dos contos: no do retrato do médico que
ganhava um dinheirinho extra em tempos de peste e no do vendedor de indulgências,
em que três jovens embriagados decidem (vejam só!) matar a Morte, que fazia imensos
estragos em tempos de epidemia.
Transcrevo este trecho desta última história: “(...) – Senhor
– respondeu o rapaz – não há necessidade disso, pois fiquei sabendo do caso
duas hortas antes que vocês chegassem. Trata-se, por certo, de um amigo de
vocês. Foi morto de repente, na noite passada, enquanto estava deitado num banco,
completamente bêbado. Aproximou-se dele um ladrão – ao qual chamam de Morte –
que anda por aí matando a todos que encontra, e lhe atravessou o coração com
uma lança, fugindo a seguir, sem pronunciar uma única palavra. Essa figura
sinistra assassinou milhares de pessoas na presente peste e me parece,
senhores, que é preciso que vocês tomem precauções antes de enfrentarem um
adversário como este. Vocês devem estar preparados pois, se saírem de peito
aberto ao encontro desse ladrão (minha mãe assim advertiu) correm sério perigo.
Não posso dizer-lhes nada mais (...)”. Nem eu!!!
Boa leitura.
O Editor.
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Matar a Morte é problema na certa, pois, caso ela não morra, será horrível, mas pior será, se morrer.
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