Carola
* Por
Gustavo do Carmo
Vai começar mais uma
missa dominical na paróquia de Santa Rita. Os fiéis já estão sentados em seus
bancos, esperando o padre que entra em procissão, precedido, na sequência,
pelos coroinhas com o incenso, o ostensório e os cálices; os ministros com as
velas; um dos diáconos com a cruz e outro com a Bíblia e, finalmente, o padre
Olímpio.
Ele vai olhando em
volta da nave à procura dos seus fiéis mais assíduos. Seu Canázio, ex-mendigo e
ex-alcóolatra; Seu Joaquim, dono da mercearia da esquina, que comparece todos
os domingos vestido de terno e gravata; Donas Donana e Mariana, gêmeas quarentonas
que nunca se separaram e nunca se casaram (aliás, a missa é na intenção do aniversário
delas); Dona Clotilde, idosa que viveu os seus 90 anos no bairro, acompanhada
de sua empregada Jurandir, e Dona Carolina, outra idosa, mas com 75 anos, que
ia sozinha à missa, mesmo com problemas de locomoção. Todos estavam lá.
Menos Dona Carolina
que, até sofrer algumas quedas em casa, não perdia uma única missa e sempre dava
uma lista de pessoas a serem mencionadas na cerimônia. Já durante a semana se
confessava ou ia à adoração ao Santíssimo.
No entanto, faz um mês
que ela não frequenta a missa. No último ano ela vinha faltando duas e
aparecendo em apenas uma. No início, padre Olímpio ficou preocupado, achando
que ela tivesse morrido. Mas se tranquilizou quando ela apareceu normalmente.
Na semana seguinte faltou de novo. E aí se iniciou a tal rotina.
Dona Carolina pagava
dízimo todos os meses. Quando não podia ir à missa do domingo,mandava o filho ateu pagar durante a
semana. Aliás, não mandava. Ele que concordava em ir para não deixar a mãe
andando sozinha na rua. Tinha medo de que ela fosse atropelada.
Geraldo, o filho da
Dona Carola, seu apelido, se limitava a apenas entregar o dinheiro à secretária
da paróquia ou ao próprio padre Olímpio e pegar o recibo. Educado, seu único
gesto de generosidade era tranquilizar o padre que a mãe estava bem. Ela só não
ia à missa porque, num dia, acordava com dor nas cadeiras ou a família estava
passando uma semana em Cabo Frio. Às vezes, ele levava a mãe para pagar o
dízimo e a contribuição para as obras da igreja.
Depois desta missa,
Dona Carola continuou não aparecendo nas cinco seguintes. Padre Olímpio se
desesperou quando ela nem o filho não pagaram mais o dízimo. Aí ele mandou a
secretária telefonar para a casa dela.
Ninguém atendeu. Padre
Olímpio teve a certeza de que eles se mudaram para Cabo Frio. Ou foi embora com
o filho para São Paulo? Nem um casal de ministros, ex-vizinhos de Dona Carola,
sabia do paradeiro dela.
“Vai ver o filho dela
conseguiu o tão sonhado emprego de jornalista em São Paulo.” Pensou o padre,
que teve a certeza de que ela não morreu, pois seria procurado pela filha
casada de Dona Carolina para realizar a missa de sétimo dia.
Padre Olímpio seguiu
com a sua vida. Tinha outros fiéis para dar atenção. Ganhava novos e perdia
outros, além de Dona Carola. Dona Clotilde, mesmo, faleceu. Em compensação, fez
amizade com um casal recém-mudado para o bairro, que matriculou dois filhos no
catecismo e aguardava o terceiro na barriga da mulher.
Um dia, Olímpio foi
procurado por Seu Canázio na sacristia. O ex-mendigo, que voltou a beber, mas
comparecia sóbrio à igreja, lhe contou que viu Dona Carolina entrando numa
igreja evangélica. Mais precisamente na Igreja Conquistar o Poder de Deus, que
controla até uma grande rede de televisão.
Padre Olímpio sabe que
Seu Canázio voltou a beber. Por isso, duvidou de sua palavra, mesmo dizendo que
acreditava no fiel. Mas pediu para o ex-mendigo o levar para a igreja que Dona
Carolina estaria frequentando.
No dia seguinte, ao
lado de Canázio, Olímpio encontrou Dona Carolina, acompanhada de uma senhora
mulata, entrando na igreja evangélica, construída no local de um antigo cinema,
a algumas quadras da paróquia de Santa Rita. Ficou observando, do outro lado da
calçada, a sua ex-fiel.
Um minuto depois que
ela e sua acompanhante entraram, padre Olímpio e Seu Canázio atravessaram a
calçada e ficaram parados na porta do templo. Não precisavam nem entrar. Os
gritos do pastor ecoavam pela rua inteira. Falava a toda hora em demônio,
inferno, óleo, pecadores, perdão e regenerados.
Olímpio viu,
perfeitamente, Dona Carolina com os braços estendidos em forma de oração. Era
possível, também, vê-la cantando, com vigor, hinos que nunca cantara na sua
igreja. O que doeu na alma do padre católico e o fez virar os olhos
imediatamente foi o momento da oferta. Jurou ver Dona Carolina jogando duas
notas de 50 reais na cesta, enquanto que na sua igreja só recebia notas de 2 e
algumas moedas.
Em seguida, outra cena
chocou ainda mais o padre Olímpio. Dona Carolina subiu ao altar e foi
exorcizada. Saiu da igreja indignado. Esperou por ela em um carrinho de pipoca.
Meia hora depois, assim que a viu saindo do templo (se recusava a chamar aquilo
de igreja), tocou em suas costas. Ela ficou surpresa, mas desconfiada:
— Padre Olímpio! O
Senhor por aqui!
— Eu estava passando pela
rua e, por acaso, vi a senhora. Ele mentiu. — E os seus filhos? Como vão?
— Ah, seu padre. A
minha filha vai me dar um neto e o meu filho conseguiu um emprego em Belo
Horizonte.
— Que ótimo. Meus
parabéns duplos.
— Obrigada.
— Que mal me pergunte, mas o que senhora está
fazendo aqui? Se converteu?
— Ainda não me
converti, seu padre. Mas vou ser batizada em breve. A acompanhante que o meu
filho arrumou pra mim me trouxe pra cá para eu não ficar sozinha. Adorei. Me
sinto mais leve. Acho que estou até curada da minha coluna.
— Tudo bem. Seja
feliz. Que Deus te acompanhe. Disse Olímpio com um tom meio embargado e meio
impaciente.
Três meses depois,
Padre Olímpio caminhava no seu ritual de entrada para a missa de domingo, olhou
para a direita dos bancos e viu Seu Canázio, Seu Joaquim, as gêmeas Donana e
Mariana, a família jovem com os três filhos, a ex-empregada de Dona Clotilde
com o filho, nora e neto e... Dona Carolina, acompanhada dos filhos, genro, que
segurava um bebê, provavelmente seu tão sonhado neto, e a noiva de Geraldo.
Depois da missa, Dona
Carolina e Padre Olímpio conversaram. Ela explicou que voltou para a igreja
católica porque a Conquistar o Poder de Deus queria que ela doasse toda a sua
renda para subir aos céus. Dona Carola era bondosa, mas não era boba. Jurou
morrer católica e o único batismo que ia fazer seria o da neta. E Padre Olímpio
sentiu-se aliviado. Os dois reais das ofertas faziam falta no final do mês.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance
“Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea
“Indecisos - Entre outros contos”.
Bookess -
http://www.bookess.com/read/4103-indecisos-entre-outros-contos/ e
PerSe
-http://www.perse.com.br/novoprojetoperse/WF2_BookDetails.aspx?filesFolder=N1383616386310
Seu blog, “Tudo cultural” -
www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
Para garantir um lugar no céu é preciso pagar caro.
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