O luar de Caraíba tudo explica
* Por
Ciro dos Anjos
Há três ou quatro
semanas não tenho tocado nestas notas senão ligeiramente, para acrescentar uma
ou outra linha a esta ou àquela página.
Examinando-as, hoje,
em conjunto, noto que, já de início, se compromete meu plano de ir registrando
lembranças de uma época longínqua e recompor o pequeno mundo de Vila Caraíbas,
tão sugestivo para um livro de memórias.
Vejo que, sob
disfarces cavilosos, o presente se vai insinuando nestes apontamentos e em
minha sensibilidade, e que o passado apenas aparece aqui e ali, em evocações
ligeiras, suscitadas por sons, aromas ou cores que recordam coisas de uma época
morta.
Analisado agora
friamente, o episódio do carnaval me parece um ardil engenhoso, armado por mim
contra mim próprio, nesses domínios obscuros da consciência. Tudo se torna
claro aos meus olhos: depois de uma infância romântica e de uma adolescência
melancólica, o homem supõe que encontrou sua expressão definitiva e que sua
própria substância já lhe basta para as combustões interiores; crê encerrado o
seu ciclo e volta para dentro de si mesmo à procura de fugitivas imagens do
passado, nas quais o espírito se há de comprazer. Mas as forças vitais, que
impelem o homem para a frente, ainda estão ativas nele e realizam um sorrateiro
trabalho, fazendo-o voltar para a vida, sedento e agitado. Para iludir-lhe o
espírito vaidoso, oferecem-lhe o presente sob aspectos enganosos, encarnando
formas pretéritas. Trazem-lhe uma nova imagem de Arabela, humanizando o "mito
da donzela" na rapariga da noite de carnaval. Foi hábil o embuste e o
espírito se deixa apanhar na armadilha...
Não farei violência a
mim mesmo, e estas notas devem refletir meus sentimentos em toda a sua
espontaneidade. Já que as seduções do atual me detêm e desviam, não insistirei
teimosamente na exumação dos tempos idos. E estas páginas se tornarão, então,
contemporâneas, embora isso exprima o malogro de um plano.
Começarei por contar
honestamente os motivos por que, durante as três últimas semanas, abandonei
este caderno de apontamentos. São dois, e o segundo é fácil de dizer: foram as
velhas. Mas o primeiro... ainda há pouco eu hesitava em confessá-lo: foi a
moça.
Depois da quarta-feira
de cinzas veio-me uma aura romântica que me pôs meio lunático, trazendo-me dias
agitados. Presumivelmente curado da moléstia, posso contar as coisas tal e qual
se passaram. Como na noite de carnaval, e já sem a desculpa do álcool e do
éter, voltei, de novo, a essa a que vou chamando Arabela, por lhe ignorar o
nome de batismo e porque, afinal, o que lhe dei se me afigura o adequado.
Pus-me a procurá-la quase com aflição e, perdendo a noção do ridículo, confiei
o episódio e minha desordem sentimental ao Silviano. Felizmente (e com certeza
por solidariedade, visto que anda em maré análoga), ele não fez troça. Pelo
contrário, ouviu, sério, a confidência.
Podem rir-se de mim,
mas os namorados me compreenderão: amei, como se se tratasse de um ser real,
aquilo que não passava de uma criação do espírito. A vida não se conforma com o
vazio, e a imagem da moça encheu-me os dias.
Tive noites difíceis,
bebi algumas vezes e andei como vagabundo pelas ruas. Até o chefe da Seção
notou minha inquietude e fez-me assinar um requerimento de férias: "O
senhor está precisando de repouso e deve aproveitar a ocasião. O Secretário
está fora, e temos pouco serviço." (Na verdade nunca tivemos serviço, e
jamais conheci ficção burocrática mais perfeita que a Seção do Fomento...) Em
tal estado de espírito, é fácil de ver que eu não poderia retomar estas notas.
Devo retificar, nesta
página, o que atrás foi dito sobre o amanuense que espia o amanuense e lhe
estiliza o sofrimento. Observo agora que o namorado, no momento preciso de sua
agitação sentimental, não é capaz de se desdobrar ao ponto de permitir ao
espírito, quando o coração bate desordenadamente, estudar, para fins
literários, os movimentos desse desvairado músculo. As modificações que a
paixão determina em nossa substância e a diversa visão, que ela nos
proporciona, dos seres e das coisas, poderão vir lucidamente, mais tarde, ao
plano da nossa análise, quando, tudo já serenado, o espírito calcula e mede mas
certamente não são suscetíveis de registro, no instante em que devastam nossa
sensibilidade. E ninguém o ignora: a literatura das emoções é feita a frio, e a
memória ou a imaginação é que reproduz ou cria as cenas passionais. No momento
da devastação, alma e corpo se solidarizam.
Eu pediria inutilmente
o socorro do bom senso ou da análise nas horas em que vivi a perseguir uma
imagem que teria um terço de realidade e dois de fábula. Naquelas horas,
entreguei-me inteiramente aos secretos impulsos, percorrendo toda a cidade em
busca de Arabela.
Postava-me nos
logradouros públicos, penetrando a multidão, não muito convicto, e contudo
esperançoso. Muitas vezes entrevi uma figura gentil e fui, em vão, ao seu
encalço. Logo verificava o engano. É extraordinário que nesta altura da vida me
tenham acontecido tais coisas, mas o luar de Vila Caraíbas tudo explica, e o
adolescente permanece no adulto.
Só passados alguns
dias a tola idéia deixou-me, e a aventura de carnaval se foi dissipando no meu
espírito. Quis, então, voltar a estas notas, que se vão tornando o centro de
interesse de minha vida. Mas, na noite em que comecei de novo a folheá-las, ocorreu
outro empecilho: o estado de saúde das velhas. Falarei nisso amanhã. Acho-me
cansado e não há pressa.
(O amanuense Belmiro,
capítulo 8, 1937.)
*
Jornalista, professor, cronista, romancista, ensaísta e memorialista, membro da
Academia Brasileira de Letras.
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